Os homens invisíveis


Fernando Braga da Costa, à direita de camisa laranja


O Bicho

Manuel Bandeira

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.




Por Cléber Sérgio de Seixas



Você, leitor, tem costume de dar bom dia aos funcionários do condomínio onde mora, aos garis que varrem as ruas de seu município, aos ascensoristas ou aos que ocupam cargos mais subalternos na empresa onde trabalha? Saiba que um simples “bom dia”, “muito obrigado” ou “com licença” que você dirigir a estas pessoas fará muita diferença. 

Foi o que descobriu, a duras penas, o estudante Fernando Braga da Costa. Durante cinco anos, ele se passou por gari e trabalhou na limpeza do campus da USP. Seu trabalho era parte de um trabalho acadêmico. Naquele tempo, experienciou todo tipo de humilhações. Certa vez foi almoçar no restaurante da universidade e, no trajeto, passou por vários companheiros de classe e professores que chegaram a esbarrar nele, como quem esbarra num poste, sem o reconhecerem, já que nem sequer fitavam seu rosto. “Como gari, senti na pele o que é um trabalho degradante. Vivi situações que me impulsionaram a entender melhor o nosso meio psicossocial”, conta Fernando. 

Da experiência resultou uma tese sobre a “invisibilidade pública”, segundo a qual profissionais como faxineiros, garis, ascensoristas, empacotadores e outros não são “vistos” pela sociedade, que enxerga a função antes do indivíduo. Por outro lado, o indivíduo que sofre com a invisibilidade social, defende-se com as ferramentas que dispõe. Segundo Fernando Braga, por exemplo, enquanto as pessoas de classe média não cumprimentam um gari, por entenderem que se trata de uma função e não de uma pessoa, ele tenta se defender da violência da invisibilidade não respondendo a um eventual cumprimento. A experiência de Fernando está registrada no livro Homens Invisíveis–Relatos de uma Humilhação Social.

Não apenas na área profissional ocorre o fenômeno da invisibilidade social. Quantas vezes passamos diante de moradores de rua e nem olhamos, nem fazemos caso. Falando sobre meninos de rua, Luiz Eduardo Soares, sociólogo e escritor de livros como Cabeça de Porco e Elite da Tropa - este último deu origem ao filme Tropa de Elite -, afirma que “esses meninos eventualmente emergem e nos confrontam com sua violência, o que é um grito desesperado, um grito impotente”

Meninos de rua são resultados de tragédias com as quais aprendemos a conviver pelo fato de não sabermos lidar com a exclusão social. Diante da exclusão explícita, optamos por não enxergar, como se víssemos algo chocante demais e fechássemos nossos olhos. Não enxergando, aquilo passa a ser algo do nosso cotidiano, algo banal, com o que não nos preocupamos mais. Por exemplo: quando um grupo de crianças pára no sinal fechado fazendo malabarismos, nem nos damos conta, nem tomamos conhecimento de que por detrás daquelas vidas há todo um histórico de pobreza e desagregação familiar, já que partimos sempre de um pressuposto que assevera que todo morador de rua é potencialmente um marginal.

“Todo ser humano quer ser visto, quer ser reconhecido. A pior condenação a que podemos submeter uma pessoa é a indiferença. O indivíduo está faminto de existência social, de reconhecimento. No caso de meninos de rua, há duas formas de não os enxergamos. Primeiro, porque nós os ignoramos ou desdenhamos. Segundo, porque depositamos sobre eles algum tipo de estigma, ou seja, a caricatura projetada dos nossos preconceitos”, continua Soares num trecho do documentário Ônibus 174 (José Padilha, 2002). 

Os invisíveis não têm voz, mas querem ter vez. São caricaturas andantes sobre as quais projetamos todos os nossos preconceitos, fundados ou não. Nem sempre raciocinamos no sentido de que eles são produtos de uma perversa engenharia social que exclui quando deveria incluir. Num mundo onde a palavra de ordem é a competitividade, deveríamos rever nossos paradigmas e eleger a cooperação, a solidariedade, como princípios norteadores de toda e qualquer ação.

Esses párias sociais, a quem devotamos o nosso desdém, estão por aí, em cada esquina. Deles não podemos nos desvencilhar, a não ser que resolvamos empurrar a “sujeira” para debaixo do tapete. 

A cidade do Rio de Janeiro é notória por suas favelas que avançam sobre o centro da cidade. Atualmente há projetos para empurrar as favelas para longe do centro, supostamente em defesa das áreas de preservação ambiental. Alguns, porém, acreditam que tal processo, na verdade, visa abrir espaço à especulação imobiliária, empurrando os pobres, os negros e os supostamente feios para a periferia, amontoando-os em guetos carentes de Estado. Outros dizem que estamos para sediar uma Copa do Mundo em alguns anos e medidas como essas devem ser levadas a cabo com urgência. Por trás destes projetos talvez haja um inconsciente coletivo que deseja despoluir a paisagem de tais indivíduos. Quem sabe se daqui a algum tempo surgirão também praias para a elite e outras destinadas aos pobres, já que os invisíveis não devem estar visíveis nestes lugares freqüentados por gente grã-fina. 

O que, no entanto, deve nos alertar é o princípio físico cujo enunciado afirma que a toda ação corresponderá sempre uma reação de igual intensidade e em sentido contrário. Se não dermos visibilidade aos invisíveis sociais, eles reagirão de alguma forma, pacífica ou não, já que não suportarão por muito tempo padecerem da falta de reconhecimento de suas identidades enquanto seres que existem, pensam e sentem.

Comentários

Unknown disse…
Esse texto que acabo de ler, postado de maneira precisa e coerente. Revela a verdadeira situação que o planeta terra se encontra. Mas, deixa claro também que cada um de nós podemos mudar, não o mundo inteiro, porém um pedacinho dele; através de uma lupa invisível, que nos faz enxergar as pessoas e não o que muitos fantasiam dizendo que é a realidade (quando na verdade, é a ilusão)podemos fazer a diferença na vida de muitos... e consequentemente na nossa.

Gostei muito deste site!