SERVO OU SOBERANO?

Por Cléber Sérgio de Seixas

Em quase todas as antigas religiões era comum a utilização de ritos sacrificiais para agradar aos deuses. Em grande parte das vezes era oferecido em sacrifício um animal ou mesmo outro ser humano (uma virgem, uma criança etc) para expiar pecados de indivíduos ou grupos de indivíduos, ou mesmo para garantir uma colheita abundante no fim de um determinado período. O sacrifício também servia como aplacador da ira divina. Tal prática ocorreu do antigo Egito até ao berço da civilização cristã, a Palestina. Circunscrevendo-se ao Cristianismo, vêem-se as bases de seu rito sacrificial sendo lançadas na religião que o precedera, o Judaísmo, nos idos do patriarca Moisés - apesar de os escritos bíblicos remontarem suas origens aos mais remotos tempos bíblicos. Foi com Moisés que a prática de sacrificar animais como oferenda a Javé se sistematizou, a ponto de toda uma infra-estrutura ter sido formada em torno daquilo que passou a ser o centro da nação itinerante em que se transformou o ajuntamento dos fugitivos hebreus. O tabernáculo, com seu complexo cerimonial de ofertas e sacrifícios, passou a ser o centro da nação nômade hebraica, até que esta se sedentarizou além do rio Jordão. Com a construção do templo em Jerusalém, os sacrifícios continuaram, mas de forma diferente.

Certa passagem bíblica narra o episódio em que Jesus expulsa os vendedores e compradores do templo e os acusa de estarem transformando a casa de Deus em covil de salteadores (vide Bíblia em Mc 11:15-17;Lc 19:45,46;Mt 21:12,13). Outrora, no tempo do assim chamado Antigo Testamento, era comum aos israelitas criar animais não somente para consumo próprio, mas também para oferecer a Deus. Na época de Jesus talvez este costume tenha sido abandonado – não se sabe se por questões de pobreza ou simplesmente por perda da tradição - e fosse comum comprar os animais para sacrifício no próprio pátio do templo. Tal prática deve ter criado uma nova categoria de indivíduos, os cambistas. Portanto, para alguns não mais era necessário criar animais para sacrifício, mas apenas procurar pelo cambista, que já os tinha para venda, provavelmente, por um preço superfaturado. Desvirtuava-se assim a pureza e santidade daquele ambiente, que se transformou em ambiente de comércio e lucro.
Nos dias atuais também se observa uma classe de pessoas que está mercadejando com a palavra de Deus, ou seja, utilizando-a para lucro próprio, aproveitando da ingenuidade e desprovimento dos fiéis. Para esse tipo de pessoas, quanto mais miserável a situação da sociedade, melhor será o terreno para a propagação de sua pregação, pois corações e mentes estarão mais vulneráveis.

O evangelho de João menciona uma multidão seguindo a Jesus após este ter multiplicado pães e peixes. Como homem-Deus, ele bem sabia o que continha o coração daqueles seguidores oportunistas. Desta feita, virou-se para eles e afirmou: “em verdade, em verdade vos digo: vós me procurais, não porque vistes os sinais, mas porque comestes dos pães e vos fartastes. Trabalhai não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o filho do homem vos dará...” (Jo 6:26,27). Em outras palavras, Jesus estava dando um recado àqueles que o estavam seguindo apenas com o intuito de garantir o próprio bem-estar, isto é, àqueles que não o seguiam por amá-lo, mas por estarem interessados naquilo que ele poderia lhes prover em termos materiais. Assim sendo, convida-os a comerem uma comida que duraria pela eternidade, não aquela que eles deveriam comer diariamente.

Encontramos atualmente muitos cristãos seguindo a Deus tal como aquela multidão seguia a Jesus, ou seja, mais interessados em satisfazer os próprios anseios do que imbuídos do desejo de servir a Deus sem almejar algum tipo de recompensa. Sob este prisma o rei é convertido em criado, o soberano em servo, na medida em que os desejos do fiel se sobressaem àqueles que seriam os projetos divinos. Tais indivíduos dissimulam seus interesses particulares sob o áureo manto dos interesses de Deus, assim como encobrem seus erros e defeitos debaixo daquilo que seriam os retos desígnios de Deus.

A contradição se instala a partir do momento que o interesse de satisfação terrena é confrontado com a idéia de recompensa futura que permeia a concepção de “céu”. Ora, que tipo de céu é almejado pelos cristãos, o céu aqui na terra, confundido por muitos com acúmulo de bens materiais, ou aquele que está associado à idéia de eternidade, na qual todos viveriam eternamente sob paz e justiça? Nesses tempos em que o consumo é alçado à categoria de religião, alguns cristãos foram cooptados pelo apelo consumista. Pregadores oportunistas promoveram a conciliação entre os efêmeros interesses humanos e aqueles que seriam os interesses de Deus. O neoliberalismo capitalista, que transforma tudo em mercadoria, lançando seus longos e onipresentes tentáculos também na pregação cristã, adaptou-a aos mais vis interesses humanos, convertendo, por exemplo, a ganância em virtude. Na verdade a reconciliação entre o Deus e Mamon remonta aos tempos de Calvino, sendo este um de seus mais proeminentes teóricos, tal como constata Max Weber em seu clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Trata-se do que o poeta Virgílio chamou de Auri Sacra Fames (fome sagrada do ouro).

Capitaneados pelos “pastores eletrônicos”, muitos religiosos encontraram nesses tempos difíceis pelos quais passamos, o palco ideal para a difusão da idéia de que o cristão será uma pessoa bem sucedida, sobretudo materialmente, se for um fiel depositário de ofertas e dízimos. Não é preciso dizer que tal tipo de pregação, que um amigo meu certa vez chamou de “evangelho Coca-Cola” devido a sua natureza descartável e consumista, cai como uma luva para aqueles que encaram o seguimento de uma determinada crença como apenas um meio mais “fácil” de resolver problemas materiais e sentimentais, problemas estes que muitas vezes não passam de mera conseqüência da falta de retidão das ações do próprio fiel, tal como a solução dos mesmos seria oriunda de atitudes opostas às anteriormente praticadas.

Sob a égide de tal tipo de pregação, a solidariedade é substituída pela busca do sucesso individual; a humildade sai de cena para dar lugar à ostentação oriunda da exibição de bens materiais supostamente adquiridos pelas “bênçãos divinas”; templos humildes dão lugar a palacetes, cujo esplendor destoa dos primeiros locais de adoração cristãos e da simplicidade que sempre cercou o homem Jesus; o sentido de coletividade e cooperação curva-se ao individualismo e à concorrência, fato ilustrado especialmente pelos grandes cultos, onde cada crente disputa com seu semelhante, quem se veste melhor para o cerimonial, ou então qual deles estaciona o carro mais luxuoso no estacionamento do templo; o altruísmo cede lugar ao egoísmo. O fiel transforma-se, assim, no que eu chamaria de cristian yuppie, ou seja, um indivíduo que se delicia com a ostentação de bens, aliena seu pensamento de causas coletivas e alija de suas liturgias e práticas cotidianas tudo aquilo que destoe de seu sucesso e salvação individuais.

Um dos argumentos utilizado por tal estirpe de cristãos consiste naquilo que chamo de “pregação da prosperidade”, ou seja, a afirmação de que Jesus teria sofrido tudo pelos seus seguidores (etimologicamente cristianos, seguidores de Cristo), num processo que vai do seu nascimento à sua dolorosa morte na cruz. Assim, os cristãos não precisariam sofrer, visto que Cristo já carregou a cruz, isto é, já sofreu tudo por eles. Restaria a eles apenas o gozo das benesses advindas do fato de serem o que são, filhos do rei. Um filho do rei não deveria sofrer, não deveria ficar desempregado, não deveria ser maltrapilho, não deveria adoecer e, caso isto acontecesse, a cura viria sem o auxílio de médicos ou remédios após um período de penitências, jejuns e orações. Em resumo, um filho do rei seria aquele indivíduo que obtém sucesso em todas as áreas do seu viver, do casamento ao emprego, da geração à criação dos filhos. Assim sendo, de acordo com tal tipo de concepção, poderíamos considerar o cristão como uma espécie de super-homem.

Muitos cristãos utilizam como justificador dos seus erros o argumento que os compara a um edifício inacabado, que ainda não chegou a seu estágio final, isto é, a uma suposta perfeição. “Estamos em obras”, costuma-se dizer para justificar imperfeições de caráter. O que se questiona aqui não é o fato de o cristão “estar em obras”, nem tampouco pretende-se cobrar a perfeição de ninguém. O questionamento é acerca da utilização de tal argumento para justificar defeitos por anos a fio, sem que nenhuma mudança de caráter seja percebida ou mesmo almejada. Abrigam-se debaixo da sombra de tal argumento para permanecerem como estão, aferrados a seus próprios defeitos e desvios de caráter. É próprio de muitos cristãos dissimularem sua irresponsabilidade humana sob o sacro manto da soberania divina. Por exemplo, é sabido que no trânsito um homem é lobo para outro homem – homo homini lupus – ou seja, todos se transformam quando ficam ao volante. Imaginemos uma situação hipotética: um cristão praticante entra em seu carro e viaja pelas auto-estradas acima do limite de velocidade, mesmo que haja crianças a bordo, e ocorre um acidente com vítimas fatais. Os mais devotos afirmariam que a tragédia fora apenas o desenrolar da vontade e soberania divinas, em outras palavras, que Deus quisera assim, fora soberano. Por outro lado, os céticos diriam que o episódio não fora nada mais que a conseqüência direta da imprudência humana. Ainda utilizando este exemplo, se a bordo houvesse infiéis, e se só os mesmos viessem a óbito, dir-se-ia que morreram exatamente por serem infiéis, nunca porque o motorista, um crente, fora imprudente. Da parte dos mais “espirituais” nenhuma palavra seria dita sobre a imprudência do motorista, de sua irresponsabilidade ao dirigir acima dos limites da via. Tudo seria jogado na conta do Criador, que assim, transmutar-se-ia, novamente, de soberano em servo, ou seja, responderia por um delito praticado pela criatura. Tal modus operandi e modus vivendi é próprio daqueles que sempre têm como tática confundir os próprios defeitos com o que seriam os desígnios de Deus.

Dos puritanos do Mayflower às raposas teocons do governo Geoge W. Bush, podemos concluir que os Estados Unidos foram sempre majoritariamente protestantes. A nação cujo símbolo é uma ave de rapina, sempre foi expoente nos quesitos mais imorais da política externa, apesar de seus governantes se declararem cristãos e protestantes. Recentemente os EUA se lançaram numa cruzada para erradicar o terrorismo, que muitos confundem com islamismo, e difundir os ideais cristãos e “democráticos” da nação do Tio Sam. É mais que notório, no entanto, que sob tal movimento de difusão do ideário anglo-saxônico, se escondem os mais execráveis interesses imperialistas.

Creio que nenhuma crença deve ser utilizada como mera justificadora da opressão. Não creio que os pais, por serem incapazes de tratar bem os próprios filhos ou de pedir-lhes perdão por injustiças passadas ou maltratos infringidos, poderiam justificar os erros utilizando passagens como “honra teu pai e tua mãe para que se prolonguem os teus dias na terra...”, como se o respeito fosse algo unilateral, uma obrigação só dos filhos. Se tal tipo de argumento for aceito, a pregação cristã se converterá em justificadora da opressão, perdendo assim sua capacidade transformadora do caráter indivíduo.

Se o empregado que sofreu injustiça não pode processar seu patrão porque este último seria um “instrumento nas mãos de Deus” para discipliná-lo, ou se os que são oprimidos sob um sistema político-econômico que consideram injusto não podem se insurgir contra as autoridades estabelecidas porque estas teriam sido "instituídas por Deus", fica a pergunta: quem é Deus? É uma entidade que nos manipula num tabuleiro de xadrez do tamanho do universo - onde poucos são reis, rainhas e bispos, e a maioria esmagadora é constituída de peões - numa partida sem início nem fim? Ou Deus é um servo disposto a satisfazer os desejos de todos seus seguidores? Se a última for a alternativa correta, como o Criador faria para conciliar os interesses difusos de um sem número de fíéis?

Observação: o autor é marxista e também cristão

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