O COMENTÁRIO DE GARCIA

Por Cléber Sérgio de Seixas

Confesso que iria escrever sobre um outro assunto hoje, mas após ouvir na rádio Itatiaia pela manhã o comentário político do jornalista Alexandre Garcia, me vi forçado a escrever este post. Eis a íntegra do infeliz comentário:

“A Fundação Getúlio Vargas está mostrando que o Brasil está em recessão desde o último trimestre do ano passado, e que a atividade econômica, o PIB, já caiu em 3,6%. Aí eu me sinto tentado a comparar o Brasil com o Chile. O Chile, com toda essa crise mundial, vai ter uma queda do PIB de só 0,5%. O Chile tem dívida paga, economia funcionando, guardou reservas do tempo em que o preço do cobre estava alto, aprendeu muito, mesmo os socialistas chilenos, e principalmente eles, com o desastre e a péssima administração que foi o governo de Salvador Allende, que arrasou a economia chilena com 500% de inflação enquanto recebia armas de Fidel Castro e brincava de fazer tiro ao alvo com metralhadora. O governo socialista do Chile passa longe das loucuras de Allende e no Chile não tem mais lugar para mais nada parecido com ele, um tipo assim que continua a graçar na América Latina...”

No comentário acima o jornalista aponta uma melhora da economia chilena nos últimos anos, o que está fazendo com o que o país, que dispõe de generosas reservas financeiras, não sinta tanto os efeitos da crise financeira mundial, situação semelhante à do Brasil. Garcia afirma que o governo socialista de Bachelet passa longe das “loucuras de Allende”, cujo governo teria sido uma “péssima administração” e teria arrasado a economia chilena. Não sei de onde o jornalista tirou essa de que Allende brincava de tiro ao alvo, mas se o presidente chileno comprou armas de Fidel, provavelmente foi para se defender dos militares golpistas chilenos ou do movimento Pátria e Liberdade, em cujos quadros se encontravam agentes da CIA infiltrados. Para fechar o pacote, Alexandre Garcia diz que regimes nos moldes do de Allende ainda teimam em graçar na América Latina, referência indireta a governos de cunho popular, socialista e progressista, tais como os de Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador.

Das duas uma: ou o nobre jornalista está mal informado ou então muito mal intencionado. Levando em conta o jornalismo de tipo sabujo que predomina na grande mídia brasileira, fico com a segunda alternativa.

Todos sabem que o governo de Salvador Allende foi sabotado desde que tomou posse. Instalado na presidência, Allende, o primeiro marxista na história a chegar ao poder através das urnas, tratou de nacionalizar as minas de cobre, uma das maiores riquezas do país, cujas minas, até então eram controladas por duas empresas estadunidenses, a Anaconda Cooper Mining Company e a Kennecott Copper Company. Posteriormente Salvador Allende levou a cabo a reforma agrária, desapropriando grandes extensões de terras improdutivas. Nacionalizou também os serviços de telefonia e fez intervenções no sistema bancário. Tais medidas provocaram a fúria dos Estados Unidos e da burguesia chilena.

Nas eleições de março de 1973, a coalizão Unidade Popular conquistou a maioria de cadeiras no parlamento chileno, possibilitando, assim, a permanência de Allende no poder. Derrotada nas urnas, a oposição inicia um processo para desgastar o governo de várias formas, dentre elas:
- açambarcamento do setor de distribuição de alimentos, provocando crises graves de desabastecimento;
- sabotagem da governabilidade por intermédio de um sem número de comissões de investigação das políticas econômicas, cujo intuito real é provocar o afastamento de vários ministros;
- financiamento de greves patronais, sobretudo no setor de transporte, o que fará parar o país. Detalhe: para ficarem com os caminhões e ônibus parados, empresários do ramo de transporte recebiam dinheiro da CIA, conforme ratificou, tempos depois, o jornal New York Times;
- Indução de greves no setor do cobre, maior riqueza do país. Episódio emblemático é a greve dos mineiros da mina de El Teniente.

No entanto, nenhuma das medidas supra mencionadas foram suficientes para apear Allende do poder. A partir de então a oposição apelará para o golpe direto. Em 29 de junho de 1973 uma ala do exército tenta um golpe, que é logo rechaçado. Porém em 11 de setembro de 1973 é dado o golpe de misericórdia. Liderados pelo general Pinochet, até então homem de confiança de Allende, os golpistas ordenam o bombardeio do palácio de La Moneda. Munido e um fuzil AK 47, que teria sido um presente de Fidel Castro, Allende prefere o suicídio a entregar-se aos golpistas.

Militares golpistas sitiam o Palácio de La Moneda

No poder, a junta de governo liderada por Pinochet iniciará uma ditadura que durará cerca de 17 anos e deixará um rastro de mais de 3 mil entre mortos e desaparecidos. A ditadura fora amplamente apoiada por Washington e foi responsável por introduzir políticas econômicas neoliberais naquele país do cone sul, o que, segundo alguns, têm garantido até hoje a estabilidade financeira chilena.

Talvez seja a esta estabilidade que se referiu Garcia no comentário que reproduzi acima. Contudo, afirmar que o governo Allende foi um desastre é, para dizer o mínimo, leviano, já que fora, desde o início, uma administração vitimada por toda sorte de sabotagens levadas a cabo por opositores internos financiados por interesses externos. Contudo, a colocação do nobre jornalista fantoche é compreensível se considerarmos que passamos por um período onde está em franco processo um revisionismo histórico; a ponto de um jornal de grande circulação nacional ter rebatizado a ditadura que vigorou no Brasil de 1964 a 1985 com o nome de “ditabranda”.

Na América Latina a história sempre se repete: em nome de um suposto nacionalismo, nossas burguesias recorrem ao entreguismo como moeda de troca para manterem seus privilégios de classe, mesmo que isso redunde em ditaduras assassinas e num caudal que escoe para fora do país riquezas que poderiam alavancar o desenvolvimento interno, arrancando da miséria milhares de cidadãos.

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