PENSO, LOGO, RESISTO

"O Pensador", escultura de Rodin

Por Cléber Sérgio de Seixas

Como se subjuga um povo? Como fazê-lo vergar-se diante dos interesses de uma classe menos numerosa, mas economicamente superior? Como fazer com que aceite pacificamente permanecer em sua condição de explorado? Alguns responderão: com a força bruta, pela força das armas. A resposta é correta, porém, não única. Há outras formas mais eficientes, menos violentas e menos dispendiosas de se subjugar um povo cultural e ideologicamente. Não quero afirmar aqui que métodos violentos serão sempre utilizados, mas que a eles se apelará sempre que outras vias falharem ou não se revelarem adequadas às circunstâncias.

É interessante às classes exploradoras que os explorados se vejam sempre como os coitados, como os incapazes, como os que nada podem para mudar sua própria condição, pois é assim mesmo que são vistos pelas classes dominantes, incluída aí grande parcela da classe política.



Paulo Freire diz que o oprimido às vezes hospeda em si o pensamento do opressor. Quantas vezes escutamos da boca do povo “Ah, as coisas são assim mesmo! Os políticos são todos corruptos e não vão mudar nunca. A gente vota neles e depois eles se esquecem de nós. É normal!”, ou então, “aqui se faz, aqui se paga”, ou ainda, “escapa da justiça dos homens, mas não escapará da justiça de Deus”. Sobre esta questão Paulo Freire se pronuncia no livro Pedagogia do Oprimido da seguinte forma: “Quase sempre este fatalismo está referido ao poder do destino ou da sina ou do fado – potências irremovíveis – ou a uma distorcida visão de Deus. Dentro do mundo mágico ou místico em que se encontra a consciência oprimida, sobretudo camponesa, quase imersa na natureza, encontra no sofrimento, produto da exploração em que está, a vontade de Deus, como se ele fosse o fazedor desta ‘desordem organizada’(...) A autodesvalia é outra característica dos oprimidos. Resulta da introjeção que fazem eles da visão que deles têm os opressores (...)De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua ‘incapacidade’. Falam de si como os que não sabem e do ‘doutor’ como o que sabe e a quem devem escutar. Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais”.

No trecho acima, Freire nos ensina que o oprimido introjeta a forma de pensar do opressor, ou seja, toma como sua a concepção que dele tem o opressor. Eis uma forma eficiente de domesticar, de subjugar. Se aceito o fatalismo de que nada posso fazer por ser um fraco, iletrado e incapaz politicamente de mudar alguma coisa, como me disporei a lutar por meus direitos de cidadão?

Outra forma de se subjugar um povo é distraí-lo para que não veja, ou pelo menos não perceba com tanta intensidade, a situação de opressão e dificuldade na qual se encontra. Na antiga Roma, quando massas de desvalidos invadiram a capital do império, os imperadores, receosos da revolta daqueles, criaram a política do pão e circo, que consistia em oferecer aos romanos alimentação e diversão. Assim, quase todos os dias ocorriam eventos nos estádios, nos quais o povo se distraia vendo feras devorando pessoas, gladiadores se matando e jogos diversos. Além disso, havia distribuição gratuita de alimentos durante os eventos, o que acalmava os ânimos, diminuindo as chances de revolta popular.

Nos dias atuais não é necessário um banho de sangue para distrair um povo. A indústria cultural homogeneíza gostos, comportamentos, descaracteriza identidades culturais, funcionando como uma espécie de lenitivo aos problemas pelos quais passa a população mundial, constituída, em sua maioria, por pessoas pobres ou que estão abaixo da linha da pobreza. Assim sendo, a dona de casa pode sonhar enquanto assiste ao programa de auditório que distribui prêmios para pessoas carentes ou enquanto vê o glamour dos personagens na novela das nove. Imagine, por exemplo, o impacto que uma novela cujos modos de vida retratados pertencem a uma cultura localizada no eixo urbano Rio-São Paulo, pode provocar em outras culturas brasileiras, como as do nordeste ou do interior de Minas Gerais.

É oportuno também fazer a distinção entre cultura e entretenimento. No âmbito do senso comum, posso resumir cultura como aquilo que nos faz crescer intelectualmente, enquanto o entretenimento é a cultura associada à diversão, mas subtraída de fatores que promovem o crescimento intelectual. Por exemplo: uma peça de teatro pode ser entretenimento ou cultura dependendo de seu conteúdo. Programas de auditório, em sua maioria, não passam de entretenimento, sobretudo quando se perdem em jogos diversos que não acrescentam nada ao intelecto do expectador.

O domingo é o dia que se apresenta como expoente da imbecilização que domina a programação das TV’s abertas. A programação tende a ser bem light, não oferecendo ao público nada que seja cult ou que faça pensar demais, pois, como costuma afirmar minha esposa, pensar dói.

A indústria cinematográfica não foge à regra. Diretores e produtores preferem investir seus esforços na produção de filmes que apelem mais aos sentidos do que ao intelecto; que primam pelos efeitos especiais e reservam a segundo plano o desempenho dramático dos autores, bem como o roteiro. Assim, a cultura acaba se tornando refém do mercado.

A saída seria a democratização dos meios de comunicação de massa, onde o público possa se manifestar e romper a polaridade característica da mídia tradicional, a exemplo do que promovem rádios comunitárias e blogs independentes, instrumentos que dão voz e vez aos sem vez e sem voz.

Em seu Discurso da Servidão Voluntária, o pensador francês Etienne de La Boétie nos dá o exemplo do estratagema utilizado pelo rei persa Ciro para conquistar um determinado povo: “Porém essa artimanha de tiranos para bestializar seus súditos não pode ser mais claramente conhecida que através do que Ciro fez com os Lídios depois de ter-se assenhoreado de Sardes, principal cidade da Lídia, de ter dominado Creso, esse rei tão rico, e de tê-lo levado discricionariamente. Trouxeram-lhe notícias de que os Sardos tinham se revoltado. Sua autoridade os teria submetido prontamente; mas como não queria saquear uma cidade tão bela nem inquietar-se sempre com o mantimento de um exército para guardá-la, descobriu um grande expediente para apoderar-se dela: ali estabeleceu bordéis, tavernas e jogos públicos, e proclamou uma ordenação que os habitantes tiveram que acatar. Ficou tão satisfeito com tal guarnição que desde então nunca mais foi preciso puxar a espada contra os Lídios: essa gente pobre e miserável divertia-se inventando todo tipo de jogo, de tal modo que os Latinos tiraram daí sua palavra, e o que chamamos passatempo eles chamam de Ludi, como se quisessem dizer Lidi”.

No trecho supracitado Etienne demonstra que nem sempre o governante precisa apelar para a violência para dominar e domesticar um povo. Traz-nos também as origens da palavra lúdico, ou seja, passatempo. Nesses tempos modernos, não faltam passatempos e a ditadura do pensamento único, que apregoa que a palavra de ordem é “desfrutar” e não “pensar”, tende a subjugar todo o pensar discordante.

Contudo, minha esperança está nos dissidentes, naqueles que não aceitam ser domesticados, que querem romper a barreira animalesca da existência, ou seja, aquela que resume a existência humana a apenas comer, beber e proteger-se (casa, vestuário). Ora, um cão come, bebe e se protege, assim sendo, em que difiro eu dele?

Se Descartes ainda estivesse entre nós, diria: “penso, logo, resisto”. Cabe aos cultural e ideologicamente colonizados romper a ditadura do pensamento único e o fatalismo que apregoa que os desvalidos nada podem fazer para se libertar do jugo que os mantêm cabisbaixos.

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