POR QUE A JUSTIÇA NÃO PUNE OS RICOS?
Por Tatiana Merlino Revista Caros Amigos, edição de maio/2009
Maria Aparecida evita olhar para sua imagem refletida no espelho. Faz quatro anos que a jovem paulistana saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria esquecer o que sofreu durante um ano de detenção. Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar um xampu e um condicionador que, juntos, valiam 24 reais. Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por seu “crime”: ficou cega do olho direito.
Portadora de “retardo mental moderado”, a ex-empregada doméstica foi detida em flagrante em abril de 2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada diretamente para a prisão, onde passou a dividir uma cela com outras 25 mulheres. Em surto, a jovem não dormia durante a noite, comia o que encontrava pelo chão, urinava na roupa.
Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto, a carceragem lançou uma bomba de gás lacrimogêneo na área das detentas. Uma delas resolveu jogar água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura do gás com o líquido fez com que seu olho fosse sendo queimado pouco a pouco. "Parecia que tinha um bicho me comendo lá dentro", conta.
A pedido das colegas de pavilhão, que não aguentavam mais os gritos de dor e os barulhos provocados pela moça, ela foi transferida para o "seguro", onde ficam as presas ameaçadas de morte. Maria Aparecida passou a apanhar dia e noite. "Eu chorava muito de dor no olho, e elas começaram a me bater com cabo de vassoura", relembra, emocionada. Somente quando compareceu à audiência do seu caso, sete meses depois de ter sido detida, sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada. Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do olho direito.
Foi nessa época que sua irmã Gisleine procurou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para a advogada Sonia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Sonia entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado. Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido presa por causa de 24 reais.
A advogada também entrou com um pedido de extinção da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”, aplicado quando o valor do patrimônio furtado é tão baixo que não vale a pena a justiça dar continuidade ao caso. No entanto, até hoje, o processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua em liberdade provisória.
A situação indigna Gisleine. "É um descaso muito grande. Já era para esse julgamento ter acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse xampu que não chegou a utilizar", critica. "Tem gente que não precisa estar na cadeia. Existem penas alternativas e o caso dela não seria de prisão, mas sim de internação, já que desde os 14 anos ela toma medicação controlada", afirma.
Justiça seletiva
O mesmo recurso jurídico – o habeas corpus – pedido pela advogada Sonia Drigo para que Maria Aparecida respondesse ao processo em liberdade foi solicitado e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas um “pouco” mais rica: a empresária Eliana Tranchesi, proprietária da butique de luxo Daslu, em São Paulo, condenada em primeira instância a uma pena de 94,5 anos de prisão. Três pelo crime de formação de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica.
Somando impostos, multas e juros, a Justiça diz que a Daslu deve aos cofres públicos 1 bilhão de reais. Os representantes da empresa contestam esse valor, mas afirmam que já começaram a pagar as dívidas. A sentença inclui ainda o irmão de Eliana, Antonio Carlos Piva de Albuquerque, diretor financeiro da Daslu na época dos fatos, e Celso de Lima, dono da maior das importadoras envolvidas com as fraudes, a Multimport.
A prisão de Tranchesi foi consequência da Operação Narciso, desencadeada pela Polícia Federal em conjunto com a Receita Federal e o Ministério Público em julho de 2005, com o objetivo de buscar indícios dos crimes de formação de quadrilha, falsidade material e ideológica e lesão à ordem tributária cometida pelos sócios da butique.
De acordo com juristas e analistas ouvidos pela reportagem da Caros Amigos, a diferença de tratamento dispensado a casos como o de Maria Aparecida e Eliana Tranchesi acontece porque, embora na teoria a lei seja a mesma para todos, na prática, ela funciona de forma bem distinta para os representantes da elite e para os pobres.
Sonia Drigo ressalta, entretanto, que não existe uma justiça para ricos e outra para as camadas mais humildes. “Ela é uma só, mas é aplicada diferentemente”. Segundo o cientista político e professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Andrei Koerner, a questão do acesso à justiça no Brasil é histórica. "Sempre houve uma grande diferença de tratamento dos cidadãos de diferentes classes sociais pelas instituições judiciárias".
Ele explica que dentro do judiciário há distinções no andamento e efetividade dos processos, que variam com a classe social dos envolvidos. Segundo ele, um dos maiores problemas do poder é sua morosidade. No entanto, "isso não significa que os processos dos ricos são mais ágeis. Depende dos interesses e efeitos produzidos pelos processos". Ou seja, a Justiça, quando interessa às classes dominantes, também pode ser lenta. Como exemplo, o professor cita "o longo tempo de uma execução para cobranças de dívidas de impostos, de contribuições previdenciárias".
Em relação a casos penais, isso também ocorre, "como quando uma pessoa com muitos recursos financeiros é acusada – Paulo Maluf, por exemplo. Nesse caso, ela é capaz de bloquear o andamento do processo até que a pena esteja prescrita. A agilidade em decidir a prisão ou soltura de uma pessoa também varia, de acordo com sua classe social", aponta Koerner. A diferença é que "um acusado de classe menos favorecida não será capaz de usar as oportunidades permitidas pelo processo".
O juiz criminal Sérgio Mazina, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), acredita que o sistema judiciário reserva, aos pobres, o espaço da justiça criminal. "Essa desigualdade, mais servil aos interesses dos poderosos e mais repressiva em relação aos mais necessitados, acirra-se ainda mais em países como o Brasil, que tem uma sociedade baseada num sistema escravista".
De acordo com Roberto Kant de Lima, Professor Titular de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), existem “moralidades” distintas por parte dos agentes de segurança pública e justiça criminal no tratamento à criminalidade, quando ela está ligada ou não ao patrimônio. “Os latrocínios [roubo seguido de morte], por exemplo, são julgados por um juiz singular, enquanto que os outros homicídios são julgados pelo júri popular’’. Segundo o professor, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, pode-se concluir que as várias “moralidades” afetam desigualmente a aplicação da lei, sendo que algumas dessas desigualdades estão registradas em tipos processuais explícitos, enquanto outras, não.
Mazina sustenta que a justiça brasileira é constituída para não ser popular. Em sua avaliação, desde a formação da legislação, há uma preocupação muito maior com a preservação patrimonial em detrimento da proteção da integridade física. Isso contribui, portanto, para a criminalização das camadas mais baixas da população, mais propensas, por sua condição social, a cometerem delitos contra o patrimônio. "Há um acirramento da legislação para os crimes cometidos pelos pobres. O código penal brasileiro criminaliza a pobreza", denuncia Mazina.
Sonia Drigo acredita que há uma dupla criminalização, pois "a exclusão já é uma criminalização. Isso me lembra a diferença de tratamento dado para um sem-teto e para aquele que mora numa mansão. Vamos penalizar aquele que não tem endereço, nem carteira assinada. Então, vamos bater nele, torturá-lo porque não teve condições de estudar e trabalhar".
O caso da ex-empregada doméstica Maria Aparecida não deixa dúvidas a respeito de como isso acontece na prática. Na casa de sua irmã, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, a moça pouco fala. Mantém-se de cabeça baixa, cabelos longos e negros escondendo parte de seu rosto. Às vezes, esboça um sorriso ingênuo. Sua expressão é de uma menina.
Quando faz um balanço da prisão, da tortura e da perda da visão, muda a fisionomia: "Tudo isso por conta de um xampu. Minha vida acabou". Maria Aparecida compara-se com Eliana Tranchesi. "Eu peguei só um xampu e fiquei lá. Ela, cheia de dinheiro, saiu logo, e teve do bom e do melhor".
A alegação que foi dada à família de Maria Aparecida para a perda da visão foi de que a jovem havia batido com o rosto no trinco de uma porta. "Mas isso é mentira, não tinha porta com trinco nenhum lá", afirma Gislaine. Quando a moça foi transferida da cadeia para o manicômio em Franco da Rocha, fizeram um exame de corpo de delito, que atestou lesões corporais leves. "Ela perdeu um órgão vital, não a socorreram. Gostaria de saber o que seria a lesão corporal grave, entregá-la num caixão para a família?", questiona Gislaine, indignada.
Propriedade, o grande valor do direito penal
De acordo com a juíza Kenarik Boujikian Felippe, integrante da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), "a propriedade é o grande valor do direito penal. Basta ver que a pena do furto é maior do que a pena de tortura. Para o direito penal, pegar algo da sua bolsa é mais grave do que a tortura", avalia. Ou seja, para a justiça brasileira, é mais importante proteger um xampu e um condicionador de alguma loja que a integridade física de Maria Aparecida.
A "sagrada" defesa da propriedade privada acaba sendo utilizada como argumento para criminalizar movimentos sociais, como no caso das organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). "Na medida em que esses movimentos possam a reivindicar uma redistribuição de riquezas, há sua criminalização. Se tiverem apresentando um reclamo como o da proteção do meio ambiente, não há necessidade de criminalizá-lo. Mas se eles questionam a estrutura econômica da sociedade, há uma propensão à sua criminalização".
Para Kenarik, a diferença de tratamento dispensado a ricos e pobres pode ser atribuída, ainda, a um "judiciário extremamente conservador, ideológico, que acha que pobre, por sua natureza, tem que estar preso. Ninguém assume isso, mas existe. É algo que vem de 500 anos de historia".
Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que, muitas vezes, os magistrados estão imbuídos de preconceito quando vão lidar com pessoas das classes menos favorecidas. De acordo com o defensor público Rafael Cruz, a exigência de endereço fixo e de trabalho para conceder liberdade provisória a uma pessoa que está sendo processada é um exemplo típico. "Na justiça federal, onde tem os crimes tributários, isso não acontece. Há uma seletividade, como se os crimes contra o patrimônio fossem mais graves que os crimes tributários".
Na avaliação do juiz Sérgio Mazina, aqueles que não têm bons antecedentes e não são proprietários acabam sendo estigmatizados. "Então, o discurso do juiz, dos policiais, é voltado para a priorização de quem tem condições econômicas, e para a punição do mais carente".
Sonia Drigo resume. A lógica, na cabeça dos magistrados, funciona assim: "vamos ver se esta pessoa não está envolvida em outros casos, se o endereço dela é este mesmo. É como se um morador de rua não tivesse cidadania para responder em liberdade qualquer processo que venha a ser instaurado contra ele".
Casos arbitrários é que não faltam. Desde 2005, após conseguir um habeas corpus para Maria Aparecida, Sonia trabalha defendendo voluntariamente mulheres acusadas de cometer pequenos furtos. O trabalho, segundo ela, não tem fim, pois sempre aparece um caso novo, o que evidencia o comportamento do Judiciário. "É como se a Justiça dissesse: 'Por que ela roubou picanha e não carne moída? Ela disse que estava com fome, mas quem garante?'. A dúvida sempre é contra aquela pessoa. Sempre se faz mau juízo, e não garante a ela os benefícios que são garantidos para aqueles que têm informação, instrução", critica.
Uma das mulheres que Sonia defende também se chama Maria Aparecida, e foi presa em flagrante por tentativa de furto de seis desodorantes de uma loja em São Paulo. Condenada a 14 meses, sua pena está próxima do fim.
A moça está na Penitenciária Feminina de Santana, a mesma onde Eliana Tranchesi esteve presa. A diferença é que a última teve habeas corpus concedido, enquanto a primeira não. Uma, era acusada de sonegar 1 bilhão em impostos. A outra, tentou subtrair objetos que não chegavam a totalizar 30 reais.
"A pena adequada não seria de privação de liberdade, e além disso, a liberdade provisória poderia ter vindo em favor dela 48 horas depois. Mas não veio. E aqui também seria aplicável o principio da insignificância", diz Sonia. Se o caso chegar ao STF, será anulado, garante. No entanto, a mulher já terá cumprido toda a sua pena.
"Ninguém vai prejudicar o patrimônio de uma grande rede de supermercados porque tentou furtar seis desodorantes que não foram usados, o chocolate que não foi comido, a picanha que não foi assada, o brinquedo que não foi usado. Há crimes contra a vida, homicidas famosos que têm o direito da liberdade provisória garantida. Já essas pessoas não, pois ousaram atingir o patrimônio de alguém".
Relações perigosas
O preconceito dos membros da Justiça com as classes mais pobres também é fruto da relação histórica entre representantes da elite e do Judiciário, afirmam os analistas. "No Brasil, ele é formado por quadros da classe dominante, especificamente no século 19. Havia a necessidade da formação de quadros, e eles vieram da elite agrária", lembra Mazina.
Na avaliação do Professor Titular de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Roberto Kant de Lima, "em qualquer sociedade, os membros do Judiciário serão parte das elites, seja por sua posição original, seja por merecimento". No entanto, ele avalia que a elite brasileira não é cidadã, pois reivindica sempre privilégios "como a aplicação particularizada e excepcional da lei no seu caso, ao invés de reivindicar a uniformidade na aplicação das normas para todos, sem distinção, característica de qualquer República".
Desse modo, acredita, o poder econômico e as relações pessoais assumem um peso crítico, "pois são acionados mecanismos legais e morais que encontram respaldo na sociedade brasileira, socialmente hierarquizada, embora teoricamente republicana".
Outro aspecto apontado é que quando se trata de crimes cometidos pela elite, como desvio de dinheiro, "parece que o acusado não é uma ameaça para a sociedade, e assim, não há um interesse para que o processo ande rapidamente", avalia Sonia Drigo. Ela lembra que nunca se encarcerou tanto no país como hoje. De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, em 1995, havia 148 mil detidos nas penitenciárias e delegacias no país. Em junho de 2007, esse número subiu para 422.373. "Esses presos não são da elite e uma boa parte não deveria estar preso. 30% do total poderia estar em liberdade”.
No Brasil, é consenso entre a população que os ricos nunca vão presos, e que cadeia é coisa de pobre. "Aqui na justiça estadual [de São Paulo] não temos a competência de investigar crimes financeiros, colarinho branco. Eles correm na justiça federal. Aqui temos roubo, tráfico de entorpecentes", relata a juíza Kenarik Boujikian Felippe. "Mas qual é o trabalho que a policia faz com eles?. O sistema policial funciona só para quem é pobre. Aquele que ganha rios de dinheiro eu não vejo, não sei quem é esse cara. Esses réus nem chegam aqui. Eles estão na esfera federal. E a policia sempre funcionou para isso, e acaba se refletindo.
Para Sérgio Mazina, presidente do Ibccrim, o principal motivo de haver poucos representantes da elite processados e condenados é fundamentalmente político, mas é resultado, também, de um sistema falho. "Não temos uma policia preparada para investigar esse tipo de crime, ela é preparada para investigar e prender aquele que está te assaltando no meio da rua com revólver, querendo pegar sua bolsa ou celular".
Já para ir atrás de crime cometido pelos representantes do poder econômico, segundo Mazina, não há estrutura, pessoal, equipamentos, e sequer formação para entender o delito que está sendo praticado, pois ele é, geralmente, complexo, por mexer com os aspectos tributário e financeiro. Assim, o sistema "se resume a fazer intervenções espetaculares, sensacionais, que acontecem em momentos da mídia, mas que são inconsistentes".
O presidente do Ibccrim destaca que a punição precisa estar assentada em cima de provas. "Não adianta sair dando sentenças de um século para todo mundo, porque ela não vai subsistir e a justiça vai ficar desacreditada. Esse é o grande perigo".
No caso de Maria Aparecida e Gisleine, isso já aconteceu. “O Judiciário precisa ser modificado. Tem que se tratar todos igualmente”, sentencia Gisleine. Já Maria Aparecida diz que a perda do olho abala muito sua vaidade: “Se pelo menos eu tivesse saído com a minha vista, nem precisava de nada mais”. Você se sente injustiçada? "Sim, muito", responde, escondendo o rosto, lágrimas escorrendo.
Maria Aparecida evita olhar para sua imagem refletida no espelho. Faz quatro anos que a jovem paulistana saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria esquecer o que sofreu durante um ano de detenção. Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar um xampu e um condicionador que, juntos, valiam 24 reais. Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por seu “crime”: ficou cega do olho direito.
Portadora de “retardo mental moderado”, a ex-empregada doméstica foi detida em flagrante em abril de 2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada diretamente para a prisão, onde passou a dividir uma cela com outras 25 mulheres. Em surto, a jovem não dormia durante a noite, comia o que encontrava pelo chão, urinava na roupa.
Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto, a carceragem lançou uma bomba de gás lacrimogêneo na área das detentas. Uma delas resolveu jogar água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura do gás com o líquido fez com que seu olho fosse sendo queimado pouco a pouco. "Parecia que tinha um bicho me comendo lá dentro", conta.
A pedido das colegas de pavilhão, que não aguentavam mais os gritos de dor e os barulhos provocados pela moça, ela foi transferida para o "seguro", onde ficam as presas ameaçadas de morte. Maria Aparecida passou a apanhar dia e noite. "Eu chorava muito de dor no olho, e elas começaram a me bater com cabo de vassoura", relembra, emocionada. Somente quando compareceu à audiência do seu caso, sete meses depois de ter sido detida, sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada. Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do olho direito.
Foi nessa época que sua irmã Gisleine procurou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para a advogada Sonia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Sonia entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado. Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido presa por causa de 24 reais.
A advogada também entrou com um pedido de extinção da ação, baseando-se no “princípio da insignificância”, aplicado quando o valor do patrimônio furtado é tão baixo que não vale a pena a justiça dar continuidade ao caso. No entanto, até hoje, o processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua em liberdade provisória.
A situação indigna Gisleine. "É um descaso muito grande. Já era para esse julgamento ter acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse xampu que não chegou a utilizar", critica. "Tem gente que não precisa estar na cadeia. Existem penas alternativas e o caso dela não seria de prisão, mas sim de internação, já que desde os 14 anos ela toma medicação controlada", afirma.
Justiça seletiva
O mesmo recurso jurídico – o habeas corpus – pedido pela advogada Sonia Drigo para que Maria Aparecida respondesse ao processo em liberdade foi solicitado e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas um “pouco” mais rica: a empresária Eliana Tranchesi, proprietária da butique de luxo Daslu, em São Paulo, condenada em primeira instância a uma pena de 94,5 anos de prisão. Três pelo crime de formação de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica.
Somando impostos, multas e juros, a Justiça diz que a Daslu deve aos cofres públicos 1 bilhão de reais. Os representantes da empresa contestam esse valor, mas afirmam que já começaram a pagar as dívidas. A sentença inclui ainda o irmão de Eliana, Antonio Carlos Piva de Albuquerque, diretor financeiro da Daslu na época dos fatos, e Celso de Lima, dono da maior das importadoras envolvidas com as fraudes, a Multimport.
A prisão de Tranchesi foi consequência da Operação Narciso, desencadeada pela Polícia Federal em conjunto com a Receita Federal e o Ministério Público em julho de 2005, com o objetivo de buscar indícios dos crimes de formação de quadrilha, falsidade material e ideológica e lesão à ordem tributária cometida pelos sócios da butique.
De acordo com juristas e analistas ouvidos pela reportagem da Caros Amigos, a diferença de tratamento dispensado a casos como o de Maria Aparecida e Eliana Tranchesi acontece porque, embora na teoria a lei seja a mesma para todos, na prática, ela funciona de forma bem distinta para os representantes da elite e para os pobres.
Sonia Drigo ressalta, entretanto, que não existe uma justiça para ricos e outra para as camadas mais humildes. “Ela é uma só, mas é aplicada diferentemente”. Segundo o cientista político e professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Andrei Koerner, a questão do acesso à justiça no Brasil é histórica. "Sempre houve uma grande diferença de tratamento dos cidadãos de diferentes classes sociais pelas instituições judiciárias".
Ele explica que dentro do judiciário há distinções no andamento e efetividade dos processos, que variam com a classe social dos envolvidos. Segundo ele, um dos maiores problemas do poder é sua morosidade. No entanto, "isso não significa que os processos dos ricos são mais ágeis. Depende dos interesses e efeitos produzidos pelos processos". Ou seja, a Justiça, quando interessa às classes dominantes, também pode ser lenta. Como exemplo, o professor cita "o longo tempo de uma execução para cobranças de dívidas de impostos, de contribuições previdenciárias".
Em relação a casos penais, isso também ocorre, "como quando uma pessoa com muitos recursos financeiros é acusada – Paulo Maluf, por exemplo. Nesse caso, ela é capaz de bloquear o andamento do processo até que a pena esteja prescrita. A agilidade em decidir a prisão ou soltura de uma pessoa também varia, de acordo com sua classe social", aponta Koerner. A diferença é que "um acusado de classe menos favorecida não será capaz de usar as oportunidades permitidas pelo processo".
O juiz criminal Sérgio Mazina, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), acredita que o sistema judiciário reserva, aos pobres, o espaço da justiça criminal. "Essa desigualdade, mais servil aos interesses dos poderosos e mais repressiva em relação aos mais necessitados, acirra-se ainda mais em países como o Brasil, que tem uma sociedade baseada num sistema escravista".
De acordo com Roberto Kant de Lima, Professor Titular de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), existem “moralidades” distintas por parte dos agentes de segurança pública e justiça criminal no tratamento à criminalidade, quando ela está ligada ou não ao patrimônio. “Os latrocínios [roubo seguido de morte], por exemplo, são julgados por um juiz singular, enquanto que os outros homicídios são julgados pelo júri popular’’. Segundo o professor, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, pode-se concluir que as várias “moralidades” afetam desigualmente a aplicação da lei, sendo que algumas dessas desigualdades estão registradas em tipos processuais explícitos, enquanto outras, não.
Mazina sustenta que a justiça brasileira é constituída para não ser popular. Em sua avaliação, desde a formação da legislação, há uma preocupação muito maior com a preservação patrimonial em detrimento da proteção da integridade física. Isso contribui, portanto, para a criminalização das camadas mais baixas da população, mais propensas, por sua condição social, a cometerem delitos contra o patrimônio. "Há um acirramento da legislação para os crimes cometidos pelos pobres. O código penal brasileiro criminaliza a pobreza", denuncia Mazina.
Sonia Drigo acredita que há uma dupla criminalização, pois "a exclusão já é uma criminalização. Isso me lembra a diferença de tratamento dado para um sem-teto e para aquele que mora numa mansão. Vamos penalizar aquele que não tem endereço, nem carteira assinada. Então, vamos bater nele, torturá-lo porque não teve condições de estudar e trabalhar".
O caso da ex-empregada doméstica Maria Aparecida não deixa dúvidas a respeito de como isso acontece na prática. Na casa de sua irmã, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, a moça pouco fala. Mantém-se de cabeça baixa, cabelos longos e negros escondendo parte de seu rosto. Às vezes, esboça um sorriso ingênuo. Sua expressão é de uma menina.
Quando faz um balanço da prisão, da tortura e da perda da visão, muda a fisionomia: "Tudo isso por conta de um xampu. Minha vida acabou". Maria Aparecida compara-se com Eliana Tranchesi. "Eu peguei só um xampu e fiquei lá. Ela, cheia de dinheiro, saiu logo, e teve do bom e do melhor".
A alegação que foi dada à família de Maria Aparecida para a perda da visão foi de que a jovem havia batido com o rosto no trinco de uma porta. "Mas isso é mentira, não tinha porta com trinco nenhum lá", afirma Gislaine. Quando a moça foi transferida da cadeia para o manicômio em Franco da Rocha, fizeram um exame de corpo de delito, que atestou lesões corporais leves. "Ela perdeu um órgão vital, não a socorreram. Gostaria de saber o que seria a lesão corporal grave, entregá-la num caixão para a família?", questiona Gislaine, indignada.
Propriedade, o grande valor do direito penal
De acordo com a juíza Kenarik Boujikian Felippe, integrante da Associação de Juízes para a Democracia (AJD), "a propriedade é o grande valor do direito penal. Basta ver que a pena do furto é maior do que a pena de tortura. Para o direito penal, pegar algo da sua bolsa é mais grave do que a tortura", avalia. Ou seja, para a justiça brasileira, é mais importante proteger um xampu e um condicionador de alguma loja que a integridade física de Maria Aparecida.
A "sagrada" defesa da propriedade privada acaba sendo utilizada como argumento para criminalizar movimentos sociais, como no caso das organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). "Na medida em que esses movimentos possam a reivindicar uma redistribuição de riquezas, há sua criminalização. Se tiverem apresentando um reclamo como o da proteção do meio ambiente, não há necessidade de criminalizá-lo. Mas se eles questionam a estrutura econômica da sociedade, há uma propensão à sua criminalização".
Para Kenarik, a diferença de tratamento dispensado a ricos e pobres pode ser atribuída, ainda, a um "judiciário extremamente conservador, ideológico, que acha que pobre, por sua natureza, tem que estar preso. Ninguém assume isso, mas existe. É algo que vem de 500 anos de historia".
Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que, muitas vezes, os magistrados estão imbuídos de preconceito quando vão lidar com pessoas das classes menos favorecidas. De acordo com o defensor público Rafael Cruz, a exigência de endereço fixo e de trabalho para conceder liberdade provisória a uma pessoa que está sendo processada é um exemplo típico. "Na justiça federal, onde tem os crimes tributários, isso não acontece. Há uma seletividade, como se os crimes contra o patrimônio fossem mais graves que os crimes tributários".
Na avaliação do juiz Sérgio Mazina, aqueles que não têm bons antecedentes e não são proprietários acabam sendo estigmatizados. "Então, o discurso do juiz, dos policiais, é voltado para a priorização de quem tem condições econômicas, e para a punição do mais carente".
Sonia Drigo resume. A lógica, na cabeça dos magistrados, funciona assim: "vamos ver se esta pessoa não está envolvida em outros casos, se o endereço dela é este mesmo. É como se um morador de rua não tivesse cidadania para responder em liberdade qualquer processo que venha a ser instaurado contra ele".
Casos arbitrários é que não faltam. Desde 2005, após conseguir um habeas corpus para Maria Aparecida, Sonia trabalha defendendo voluntariamente mulheres acusadas de cometer pequenos furtos. O trabalho, segundo ela, não tem fim, pois sempre aparece um caso novo, o que evidencia o comportamento do Judiciário. "É como se a Justiça dissesse: 'Por que ela roubou picanha e não carne moída? Ela disse que estava com fome, mas quem garante?'. A dúvida sempre é contra aquela pessoa. Sempre se faz mau juízo, e não garante a ela os benefícios que são garantidos para aqueles que têm informação, instrução", critica.
Uma das mulheres que Sonia defende também se chama Maria Aparecida, e foi presa em flagrante por tentativa de furto de seis desodorantes de uma loja em São Paulo. Condenada a 14 meses, sua pena está próxima do fim.
A moça está na Penitenciária Feminina de Santana, a mesma onde Eliana Tranchesi esteve presa. A diferença é que a última teve habeas corpus concedido, enquanto a primeira não. Uma, era acusada de sonegar 1 bilhão em impostos. A outra, tentou subtrair objetos que não chegavam a totalizar 30 reais.
"A pena adequada não seria de privação de liberdade, e além disso, a liberdade provisória poderia ter vindo em favor dela 48 horas depois. Mas não veio. E aqui também seria aplicável o principio da insignificância", diz Sonia. Se o caso chegar ao STF, será anulado, garante. No entanto, a mulher já terá cumprido toda a sua pena.
"Ninguém vai prejudicar o patrimônio de uma grande rede de supermercados porque tentou furtar seis desodorantes que não foram usados, o chocolate que não foi comido, a picanha que não foi assada, o brinquedo que não foi usado. Há crimes contra a vida, homicidas famosos que têm o direito da liberdade provisória garantida. Já essas pessoas não, pois ousaram atingir o patrimônio de alguém".
Relações perigosas
O preconceito dos membros da Justiça com as classes mais pobres também é fruto da relação histórica entre representantes da elite e do Judiciário, afirmam os analistas. "No Brasil, ele é formado por quadros da classe dominante, especificamente no século 19. Havia a necessidade da formação de quadros, e eles vieram da elite agrária", lembra Mazina.
Na avaliação do Professor Titular de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Roberto Kant de Lima, "em qualquer sociedade, os membros do Judiciário serão parte das elites, seja por sua posição original, seja por merecimento". No entanto, ele avalia que a elite brasileira não é cidadã, pois reivindica sempre privilégios "como a aplicação particularizada e excepcional da lei no seu caso, ao invés de reivindicar a uniformidade na aplicação das normas para todos, sem distinção, característica de qualquer República".
Desse modo, acredita, o poder econômico e as relações pessoais assumem um peso crítico, "pois são acionados mecanismos legais e morais que encontram respaldo na sociedade brasileira, socialmente hierarquizada, embora teoricamente republicana".
Outro aspecto apontado é que quando se trata de crimes cometidos pela elite, como desvio de dinheiro, "parece que o acusado não é uma ameaça para a sociedade, e assim, não há um interesse para que o processo ande rapidamente", avalia Sonia Drigo. Ela lembra que nunca se encarcerou tanto no país como hoje. De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, em 1995, havia 148 mil detidos nas penitenciárias e delegacias no país. Em junho de 2007, esse número subiu para 422.373. "Esses presos não são da elite e uma boa parte não deveria estar preso. 30% do total poderia estar em liberdade”.
No Brasil, é consenso entre a população que os ricos nunca vão presos, e que cadeia é coisa de pobre. "Aqui na justiça estadual [de São Paulo] não temos a competência de investigar crimes financeiros, colarinho branco. Eles correm na justiça federal. Aqui temos roubo, tráfico de entorpecentes", relata a juíza Kenarik Boujikian Felippe. "Mas qual é o trabalho que a policia faz com eles?. O sistema policial funciona só para quem é pobre. Aquele que ganha rios de dinheiro eu não vejo, não sei quem é esse cara. Esses réus nem chegam aqui. Eles estão na esfera federal. E a policia sempre funcionou para isso, e acaba se refletindo.
Para Sérgio Mazina, presidente do Ibccrim, o principal motivo de haver poucos representantes da elite processados e condenados é fundamentalmente político, mas é resultado, também, de um sistema falho. "Não temos uma policia preparada para investigar esse tipo de crime, ela é preparada para investigar e prender aquele que está te assaltando no meio da rua com revólver, querendo pegar sua bolsa ou celular".
Já para ir atrás de crime cometido pelos representantes do poder econômico, segundo Mazina, não há estrutura, pessoal, equipamentos, e sequer formação para entender o delito que está sendo praticado, pois ele é, geralmente, complexo, por mexer com os aspectos tributário e financeiro. Assim, o sistema "se resume a fazer intervenções espetaculares, sensacionais, que acontecem em momentos da mídia, mas que são inconsistentes".
O presidente do Ibccrim destaca que a punição precisa estar assentada em cima de provas. "Não adianta sair dando sentenças de um século para todo mundo, porque ela não vai subsistir e a justiça vai ficar desacreditada. Esse é o grande perigo".
No caso de Maria Aparecida e Gisleine, isso já aconteceu. “O Judiciário precisa ser modificado. Tem que se tratar todos igualmente”, sentencia Gisleine. Já Maria Aparecida diz que a perda do olho abala muito sua vaidade: “Se pelo menos eu tivesse saído com a minha vista, nem precisava de nada mais”. Você se sente injustiçada? "Sim, muito", responde, escondendo o rosto, lágrimas escorrendo.
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