A AUTO-AJUDA NO CONTEXTO NEOLIBERAL


Por Cléber Sérgio de Seixas

Fico boquiaberto ao constatar a velocidade com que se populariza a literatura a que denominam “de auto-ajuda”. Escritores desse estilo costumam ser considerados como verdadeiros gurus para leitores ávidos de respostas fáceis e rápidas para problemas complexos como o caos existencial, o insucesso profissional, afetivo e outros.

Num mundo em que se recua cada vez mais do social para o individual, ganha terreno um estilo literário cuja tônica é de um viés voltado para o indivíduo em detrimento de questões sociais mais profundas. Assim, por exemplo, ao invés de se escrever sobre os impactos que a globalização produz na vida profissional dos indivíduos, sobre a questão do desemprego, opta-se por uma abordagem que apresenta fórmulas, muitas vezes mágicas, de se manter empregável.

Falando sobre a repercussão do livro O Segredo e do filme homônimo, a psicanalista Suely Gevertz diz o seguinte: “Do meu ponto de vista, o livro e/ou filme despertaram grande interesse porque, cada vez mais, numa cultura globalizada, o ser humano está isolado e sozinho com suas questões” (Fonte: revista Psique – Ciência e Vida).

Para ilustrar, gostaria de citar um documentário destinado à motivação empresarial que assisti a alguns anos (não me lembro o nome), cuja proposta era abordar o papel dos paradigmas no viver humano. Segundo o filme, em nossa vida sempre nos depararíamos com paradigmas que nossa psique tenderia a introjetar e erigir em tabus, que com o passar do tempo se converteriam em obstáculos para nossos avanços pessoais. Urgia, então, romper com os paradigmas, de forma a alcançarmos nossos objetivos e/ou escapar das adversidades. Em dado trecho do filme era apresentado o caso de um homem que fora prisioneiro de um campo de concentração nazista nos anos 30 e 40. O sobrevivente do Holocausto contava que enquanto permaneceu detido no campo de concentração, procurou manter uma convicção inabalável de que sairia daquele lugar com vida, não obstante presenciar a morte de outros prisioneiros das formas mais cruéis possíveis. Do exemplo do ex-prisioneiro o documentário extrai a lição de que bastam a convicção, a fé inabalável, o pensamento positivo, como queiram, para romper com os mais atrozes paradigmas.

Falei sobre este documentário a uma colega de trabalho que costuma dizer que “quando desejamos fervorosamente alguma coisa o universo conspira a nosso favor”. Disse a ela que se a sobrevivência ao holocausto fosse aceita como conseqüência direta de um pensar positivo ou coisa parecida, teríamos, então, que admitir, por outro lado, que os demais que foram fuzilados, asfixiados ou mortos das mais bárbaras formas pelos nazistas não estavam imbuídos do mesmo pensar ou não o exercitaram de forma adequada. Assim considerando, retira-se do contexto social a responsabilidade pela morbidade, concentrando-a no indivíduo.  Quero, então, propor algumas questões aos que me lêem: se bastou um pensar positivo para que um prisioneiro escapasse da morte, poderíamos concluir, então, que cerca de seis milhões e meio de judeus não tiveram a mesma força de vontade, ou seja, foram vítimas do próprio desalento? Quando a roleta russa nazista escolhia alguns aleatoriamente para viver e outros para morrer o que estava em questão, a vontade ou o acaso?

Recentemente assisti de novo ao filme Hotel Ruanda, que conta a história de um gerente de hotel em meio ao genocídio dos tutsi promovido pelos hutus, etnias historicamente rivais naquele país que empresta seu nome ao hotel. Cerca de um milhão de pessoas foram mortas, a maioria a golpes de facão, em cerca de 100 dias. Portanto, pergunto: esse um milhão de pessoas não queria sobreviver? Perdera o alento? Não exerceu suficientemente seu otimismo? Tinha problemas com a auto-estima? A resposta que obtive de minha colega de trabalho a respeito do exemplo do prisioneiro nazista foi que os que morreram talvez tenham abandonado a vontade de viver.  No caso de uma catástrofe natural, tal qual a Tsunami que varreu a  Indonésia em 2004, poderíamos concluir que os cerca de 230 mil mortos haviam desistido de viver? Por que o universo não conspirou a favor deles?

Tal forma de pensar nos leva à perigosa conclusão de que os desgraçados seriam os culpados pela própria desgraça. Só estariam numa determinada situação devido à incredulidade na própria capacidade. Ando de ônibus todos os dias, cerca de duas horas por dia e, se aceito tal raciocínio, teria que concluir  também que todos que sofrem as agruras do transporte coletivo – eu incluído – constituiriam um bando de fracos e descrentes no potencial próprio – poderíamos todos estar deslocando a bordo de nossos próprios veículos!

Auto-ajuda pode ser entendida com um tipo de literatura que busca um modo rápido, fácil e acessível de resolver os problemas do dia-a-dia das pessoas. Os conteúdos dos livros de tal vertente são organizados sem fundamentação científica para suas afirmações. Muitos destes livros se baseiam nas experiências individuais de seus autores e procuram generalizar a abordagem dos problemas das pessoas. Em outras palavras, o que deu certo para um necessariamente daria para outro. Os autores de tais livros, muitas vezes, apelam para a crença das pessoas, valendo-se de uma abordagem metafísica, tal qual a das religiões. Por falar em religiões, muitas denominações evangélicas promovem um culto à capacidade do crente, o qual deixa de orar a Deus e passa a “determinar” ao mesmo suas vontades. O que era súplica se converte em ordenação; o que era servo se converte em soberano e vice-versa (clique aqui para ler meu artigo intitulado Servo ou Soberano).

Não quero dizer que a força de vontade não é uma mola propulsora do indivíduo em busca de seus objetivos e ferramenta de combate às adversidades. O que quero deixar claro é que nem sempre a obtenção de algo vai depender de nossa vontade ou auto-estima, visto que outros fatores externos, físicos ou não,  podem estar presentes. Se tudo dependesse de nossa vontade, todos os dias moradores de rua se tornariam tais como o camelô David ou seríamos todos vencedores tal qual o doutor Lair Ribeiro. A forma de lidar com a auto-estima seria o ponto nevrálgico da questão, ou seja, pessoas perdedoras seriam também aquelas cuja auto-estima estaria em baixa.

A temática da auto-ajuda há muito se integrou ao universo empresarial. Hoje em dia está muito em voga a contratação de personalidades que foram vencedoras em suas áreas de atuação para serem palestrantes em eventos empresariais de cunho motivacional. Do treinador da seleção masculina de vôlei ao camelô que venceu na vida – supracitado neste texto – todos têm algo a dizer sobre suas experiências, que são absorvidas como fórmulas supostamente eficazes para as mais diversas demandas do setor corporativo. Nesse âmbito encontra-se de tudo, de palestrante que compara vendedor a cão pitbull, a ex-jogador de basquete que ensina à platéia como aplicar as técnicas do jogo de grandalhões às complexas rotinas empresariais. Nessa concepção, todo vencedor teria algo a dizer aos que desejam romper com a “derrota”.

Ana Maria Serra, presidente do Instituto de Terapia Cognitiva (ITC) afirma: “o problema que vejo nessas obras é que freqüentemente as orientações sugeridas carecem de comprovação mais sistemática, refletindo apenas crenças pessoais do autor, que ele extraiu de suas próprias experiências ou da experiência de outros próximos a ele. (...) O perigo é acentuar nas pessoas idéias de incapacidade e inadequação quando, com base nas orientações sugeridas pelos autores, elas falham em atingir suas próprias metas de autocrescimento, em realizar mudanças em sua própria vida e, especialmente, em manter estas mudanças ao longo do tempo”.

Nesse contexto, surge a PNL (Programação Neurolinguística) com sua pseudo-cientificidade na abordagem de questões tradicionalmente pertencentes à Psicologia, fazendo um casamento desta última com a Física Quântica. Os defensores da PNL citam muito a Lei da Atração, segundo a qual o pensamento emitiria ondas eletromagnéticas que atrairiam o “objeto” do desejo.

Para finalizar, gostaria de dizer que o fenômeno auto-ajuda só pode ser bem compreendido se for inserido no contexto da modernidade neoliberal, visto que nesta o homem encontra-se cada vez mais centrado em si mesmo e afastado de questões coletivas. Enquanto o esforço para a solução de problemas for focado no âmbito individual, as causas mais profundas, em sua maioria inseridas em contextos sociais, permanecerão intactas, colaborando assim para a permanência do status quo de uma sociedade opressora.

Comentários

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helio disse…
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