Lévi-Strauss, o poder do mito


Por Rosane Pavam


Morto no sábado 31, em Paris, à véspera de completar 101 anos, Claude Lévi-Strauss foi um dos maiores pensadores do século findo. Concluída a descoberta evolucionista de Charles Darwin, nos anos oitocentos, e tendo Karl Marx esquadrinhado o funcionamento das sociedades industriais, Lévi-Strauss uniu a linguística e a antropologia para detectar as estruturas invisíveis que determinam a vida social. O estruturalismo foi a marca de seu pensamento. Para ele, o real tinha uma construção invisível, que era preciso decifrar.

Nascido em 1908 na Bélgica, de pais franceses de origem judaica, Lévi-Strauss concebeu grandes sínteses intelectuais inspirado no modelo das partituras de música, lembra François Dosse em História do Estruturalismo. Descendente de um bisavô violinista, pai e tios pintores, passou a adolescência pelos antiquários até que a família comprou uma casa nas montanhas de Cévennes. Encantado a ponto de ali fazer caminhadas de quinze horas, ele percebeu que a arte não era mais sua paixão exclusiva. A natureza o acompanhava.

Por trás de um violino bem tocado, Lévi-Strauss compreendia haver o suor matemático, a estrutura de uma combinação de ritmo e sons. Para um fenômeno natural, impunha-se uma explicação ainda mais complexa. Embora inspirado pela arte, ele construiu sistemas lógicos para explicar o mundo da natureza e da cultura. Reivindicava exatidão para as ciências humanas.

As realidades o deixavam inquieto. Leu Marx aos 17 anos, O Capital fascinou-o. Em 1928 foi eleito secretário-geral da Federação dos Estudantes Socialistas. Era um pacifista, mas a guerra chegou à Europa, a sensação de derrota prevaleceu sobre a do engajamento e ele nunca mais pisou no caixote das reivindicações. Nos anos 70, disse ter descoberto ser perigoso “encerrar as realidades políticas no quadro de ideias formais”. Em vez de olhar para o futuro, escolheu investigar o passado, em busca de entender por que nos tornamos o que somos.

Em depoimento ao jornal italiano Corriere Della Sera na quarta-feira 4, Bernard-Henri Lévy, conhecido pela militância no Maio de 68 francês, lembra o grande escritor que havia em Lévi-Strauss, e também o gênio sem o qual pensadores como Michel Foucault, Gilles Deleuze ou Giorgio Agamben jamais existiriam. Mas faz uma ressalva. Ele deixara de vivenciar por inteiro a intelectualidade ao abdicar do direito, quiçá do dever, de intervir pela mudança social.

O raciocínio causa estranhamento, já que a intervenção de Lévi-Strauss em seu tempo fora de outra ordem, holista, unindo várias áreas do saber humano em busca de compreender as organizações sociais. Seus antecessores detectavam em um grupo humano o que lhe era peculiar, não universal. Era um tempo em que as noções de primitivo causavam um interesse espetacular nos modernos, interessados em distinguir suas linhagens daquelas ditas arcaicas. Lévi-Strauss inseriu o selvagem no jogo da civilização e o assemelhou de forma impressionante a todos os outros homens. E este pensamento não seria político também?

Ele estudou filosofia e se tornou apto a ensinar em 1930, “como um zumbi”. Quando, em 1934, o diretor da Escola Normal Superior lhe apresentou a candidatura a professor da nascente Universidade de São Paulo, Lévi-Strauss não hesitou. O diretor Célestin Bouglé lhe dissera que, durante os fins de semana, o filósofo poderia encontrar índios nos subúrbios de São Paulo, algo que já não correspondia à realidade. Aqui chegado, ele observaria a gente comum e a intelectualidade por dois anos, até que, seguro em economias, fosse aos nhambiquaras pela Expedição do Norte, em 1938.

Anos depois, em 1955, ele escreveu Tristes Trópicos para contar essa e muitas outras experiências, num relato de viagem híbrido, que incorporava à narrativa fatos encadeados pelo livre exercício da memória. “Odeio as viagens e os exploradores” são as primeiras palavras de seu livro, monumental pela excelência da escrita, inusual ao fugir das questões antropológicas por ele discutidas naquele momento, envolvendo mito e parentesco. Por muitos anos, essa narrativa foi armazenada nas seções de guias turísticos das livrarias, elas que se habituaram ao exótico como eterna celebração.

“Sua observação do Brasil no livro é muito singular”, crê a doutora em História Social Luciana Murari, autora de Natureza e Cultura no Brasil. “Para os estudiosos da vida intelectual brasileira, Tristes Trópicos reflete, inconscientemente, algumas das percepções que os próprios letrados brasileiros tinham ao deparar com as paisagens lúgubres do interior, a natureza conspurcada, o sentido de comunidade corrompido.”

Ao relembrar o Brasil, o livro deplora as elites intelectuais em passagens nas quais elas se autoproclamam peculiares, enquanto ele as vê típicas. Para Lévi-Strauss, o Brasil esmagado pela inação, pelo desrespeito à sua grandeza primitiva, era único, por exemplo, nas incríveis variações de verde das folhagens de Ubatuba.

Não teria sido feita no Brasil sua revolução intelectual, mas nos Estados Unidos, para onde se mudou, iniciada a perseguição nazista em 1939. Ali foi aconselhado a mudar seu nome para Claude L. Strauss, a fim de evitar a confusão com a marca de calças. “É raríssimo passar-se um ano sem que eu receba, em geral da África, uma encomenda de jeans”, dizia. Ele, que descobrira nas relações de parentesco um padrão de universalidade, encontrou-se no país com outro exilado, Roman Jakobson, que adotara a ideia de sistema para detectar uma regularidade em todas as línguas. Do desenvolvimento conjunto dessas ideias debatidas nasceria a antropologia estrutural, expressão que intitularia seu clássico de 1958.

Durante sua longa vida, Lévi-Strauss suscitou polêmica, e também entusiasmos, a ponto de o treinador da seleção de futebol da França anunciar, nos anos 1960, uma organização estruturalista de sua equipe, a fim de melhorar os resultados. Estruturar saía da academia para ganhar o sentido de desvendar. Mas, se os sábios desvendam, cutucam feridas. Por muitos anos, o intelectual que mais jeans ganhara em vida se viu responsável pela pecha de excessivamente críticos atribuída aos franceses.

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