A REVOLUÇÃO NECESSÁRIA



Vitor Feitosa

Em sua opinião, qual o maior problema ambiental que enfrentamos hoje? A poluição hídrica e a escassez da água? A perda de biodiversidade provocada pelos desmatamentos? A poluição atmosférica nas grandes cidades? As montanhas de resíduos amontoados de maneira inadequada em malcheirosos lixões? A inconsciência de cidadãos e governantes em relação aos descalabros ambientais? O avanço do consumismo, que detona recursos naturais? O crescimento urbano e populacional descontrolado?

Seja qual for a sua escolha, será fácil concordarmos, pois para cada uma delas podemos enumerar diversas razões muito bem fundamentadas. Todas são situações que saltam aos olhos e, por si sós, podem levar a uma militância ambientalista por toda uma vida.

Agora, tente imaginar uma situação que reúna as consequências de tudo isso junto. Você começará a ter ideia da complexidade existente nas questões relativas às mudanças climáticas. Isso porque crescem os sinais de que as atividades do homem, alterando o clima do planeta, estão mudando as condições básicas, tanto econômicas quanto naturais, sobre as quais a moderna sociedade se consolidou. E, com elas, certamente mudando as relações culturais que nos permitem ser cidadãos e protagonistas de nossa própria história, como atores sociais.

Longe de uma visão fatalista do problema da mudança climática, o que precisamos analisar é o cunho das novas relações que ela traz consigo. Porque é aí que estarão as sementes que nos permitirão equacionar problema de tal magnitude.

Enquanto a mudança climática é discutida como um problema ambiental na imprensa e em outros fóruns, o que se verifica no âmbito das negociações da ONU são discussões que refletem a busca por novas relações econômicas que se configurarão a partir daí. Porque é disso que efetivamente se trata o problema das mudanças climáticas: relações econômicas e seus impactos ambientais. Para entender o porquê disso, precisamos reconhecer que foi no uso da energia que se assentaram as bases da Revolução Industrial, que reconfigurou a história. O uso do carvão mineral e, posteriormente, do petróleo permitiu que as máquinas que sustentaram o gigantesco crescimento industrial a partir do século 18 pudessem evoluir mecanicamente, atingindo altas produtividades e fazendo com que uma incipiente sociedade de consumo pudesse se desenvolver. À eficiência mecânica de tais máquinas se somava uma alta ineficiência energética, promovida pela abundância de insumos energéticos baratos, e uma total ausência de preocupação com emissões decorrentes da queima de combustíveis fósseis.

A concentração industrial necessitava de trabalhadores e a logística de distribuição era favorecida pela concentração de pessoas, o que estimulou muito o crescimento populacional nas cidades e a estruturação de um padrão de consumo impulsionado pelo desejo quase absoluto por uma melhoria nos padrões sociais, caracterizando o que hoje chamamos de “qualidade de vida”.

Independentemente das incipientes questões ambientais, até então vistas como mero obstáculo ao alcance da almejada qualidade de vida, o crescimento das cidades trouxe outros problemas mais visíveis. As questões sociais oriundas da exclusão de grupos de cidadãos que não podiam consumir no mesmo padrão, com todas as mazelas daí decorrentes e já conhecidas, permitiram o desenvolvimento de uma gama de ideologias políticas exclusivamente apoiadas na visão social do problema.



Apenas na segunda metade do século 20 é que a questão ambiental ganha importância, quando o conhecimento do efeito dos poluentes atmosféricos – inicialmente –, o  escassear da água potável e a perda de biodiversidade – posteriormente –, confrontaram a sociedade moderna com seus limites de crescimento. Mas é a partir da década de 1980 que a sociedade conhece mais de perto os efeitos das mudanças climáticas e consegue perceber que a Terra tem uma capacidade limitada de suportar esses efeitos. O maior problema então já era de cunho cultural: à custa de recursos naturais, tidos como infinitos, e queima de combustíveis fósseis para embalar o desenvolvimento econômico, a sociedade atinge patamares de “qualidade de vida” até então inimagináveis. Como exemplo, comparada à expectativa média de vida de 100 anos atrás, que não chegava aos 40 anos, o homem urbano de hoje beira os 80 anos e almeja os 120. Como no romance de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray, morrer tornou-se postergável sem que para tal se prestasse atenção ao preço exigido, na forma de uma pegada ecológica (medida que demonstra o consumo de recursos naturais de uma entidade – pessoa, empresa, cidade ou país) superior ao que o planeta Terra poderia dar conta. Atualmente já necessitamos de 1,25 planeta, quando efetivamente temos apenas um.

PROVEDORA INFINITA A história sempre foi suportada por um conceito básico: a natureza é provedora infinita, fornecendo tudo que é necessário e absorvendo tudo que descartamos. Essa relação persistiu por pelo menos três milênios de história registrada, quando o homem dispunha tão somente de ferramentas simples para atender às suas necessidades. Com o advento da Revolução Industrial, a sociedade ganhou ferramentas poderosas, que ampliaram em muito a capacidade produtiva de um único indivíduo, permitindo que ele produzisse a mesma coisa em ritmo muito superior à sua capacidade até então. Mudou-se a forma de trabalho, mas não mudaram as relações culturais que preservavam o entendimento da natureza como infinita provedora. Estava dada a senha para o crescimento vertiginoso da pegada ecológica.

Abandonar relações que se mostram inúteis ao desenvolvimento e à sobrevivência da espécie é sempre algo difícil. Muitas espécies desaparecer do planeta por não encontrar meio de se adaptar às mudanças, que sempre existiram na história geológica da Terra. Nós, seres humanos, fomos dotados de uma capacidade adicional às demais espécies: a de estabelecer relações culturais, que permitem a identificação de modos de comportamento perante a realidade, que leva à adaptação às mudanças. As relações culturais se caracterizam pela capacidade que temos de aprender com experiências e passar à frente as experiências vividas, gerando novos aprendizados. Com isso, futuras gerações têm um ponto de partida para desenvolver as próprias experiências e aperfeiçoar o processo. A experiência que vivemos no momento com as mudanças climáticas não é nova para o planeta, conquanto seja nova dentro dos registros históricos humanos. Por isso o aprendizado rápido torna-se fundamental.

A questão das mudanças climáticas traz duas vertentes de análise igualmente importantes. A primeira refere-se à origem do problema. Como mencionado, as causas estão relativamente bem estabelecidas, já sendo conhecidas as razões científicas que levam ao efeito estufa, pelo qual alguns gases retêm mais calor na superfície da Terra do que seria necessário à preservação da vida. Esses gases em excesso derivam principalmente das atividades humanas, por meio da queima de combustíveis fósseis, atividades agrossilvopastoris e manuseio de resíduos. Em decorrência do aumento da quantidade desses gases, surge o aquecimento mais intenso da superfície do planeta e a atmosfera reage buscando dissipar o calor por meio de mudanças nos padrões climáticos, uma vez que o clima é o grande regulador térmico da Terra.

A segunda vertente refere-se ao problema da adaptação aos efeitos das mudanças do clima. Inundações, furacões, aumento do nível dos mares, entre outras reações, provocam dramáticos impactos nas populações estabelecidas, muitas delas completamente despreparadas para enfrentar o problema.

RELAÇÕES INSUSTENTÁVEIS O que se observa atualmente é uma discussão muito intensa sobre a maneira de reduzir as emissões, mas insuficiente debate sobre a adaptação. Reduzir emissões é importante. No entanto, os efeitos são muito lentos e as consequências sofridas hoje não decorrem das emissões atuais, mas de emissões de décadas atrás e que ainda permanecerão ativas por séculos. Portanto, a adaptação precisa ser discutida com alta prioridade também. Não é por outra razão que relatório do Pentágono feito em 2004 indicava a questão da adaptação às mudanças climáticas como a maior ameaça à segurança dos EUA. A questão do terrorismo vinha apenas em segundo lugar.

Lidar com o problema da mudança climática é, portanto, lidar com um modelo de sociedade que foi construído com base em relações econômicas insustentáveis. Tanto as demandas exageradas por parte da sociedade de consumo precisam ser revistas, quanto o modelo de produção ser completamente alterado. Precisamos de uma nova Revolução Industrial, baseada na inovação e em práticas sustentáveis de produção, que, por sua vez, induzam a mudança de comportamento do consumidor e criem novas relações culturais.

Sem essas relações fortemente estabelecidas, poderemos nos perder em meio a uma discussão infértil de busca de culpados. Precisamos nos reconhecer como parte do problema, para encontrarmos a solução. Pois, enquanto cada indivíduo considerar que a responsabilidade não é dele também, faltará o ingrediente mais importante para a mudança da relação cultural: a pactuação entre os agentes econômicos que, em conjunto, concorreram para o problema.

Portanto, mudança climática precisa ser entendida como uma mudança cultural nos padrões sociais estabelecidos em bases insustentáveis. É um alarme soando, a indicar que uma nova Revolução Industrial, lastreada por inovações tecnológicas, científicas, sociais e culturais, faz-se imperiosa no direcionamento dos novos rumos que nos levarão a uma sociedade realmente sustentável.

Vitor Feitosa  é geólogo, formado pela USP, tem MBA em gestão e empreendedorismo social pela FIA-USP. É presidente do Conselho de Empresários para o Meio Ambiente da Fiemg e coordenador do SC-09, Subcomitê de Mudanças Climáticas da ABNT.


Fonte: Jornal Estado de Minas 

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