RESGATANDO A MEMÓRIA

Arranjo de flores para Fleury: herói nacional?


Por Cléber Sérgio de Seixas


Às vezes me pergunto se este país tem ou quer ter alguma memória política e histórica. Converso com pessoas de minha geração – a dos que nasceram nos anos setenta - ou com outros da geração seguinte e percebo um claro desconhecimento dos acontecimentos que marcaram os últimos 50 anos de nossa história e um quase total desinteresse em conhecer. Quando o assunto é o período da ditadura militar, o desconhecimento fica patente. Certa vez um colega de trabalho disse que a ditadura militar foi muito boa para o país, a não ser pela repressão.

Nosso passado permaneçe nublado. A memória nacional às vezes tenta resgatar fatos, mas encontra pouca documentação. Enquanto países como Argentina e Chile passaram a limpo seu passado, punindo torturadores e assassinos que estiveram a serviço de ditaduras militares que assolaram seus países durante anos, a nação verde e amarela sequer abriu os arquivos da ditadura, verdadeira caixa de pandora cujo conteúdo azedaria a vida de muita gente que colaborou com o regime e anda por aí impunemente.

Nossa transição política do regime ditatorial para a democracia foi um acordo entre a elite fardada e a elite engravatada; acordo de cuja mesa de negociação se excluiu o povo. É como se os militares tivessem dito: “tudo bem, anistiamos os perseguidos políticos e os exilados podem voltar, mas vocês não vão poder mais tocar no assunto tortura ou assassinatos. Passaremos a faixa presidencial a um civil, mas não mencionem mais nossos crimes. Deletem da memória nacional os muitos assassinatos que cometemos e as muitas torturas que infligimos que iremos conviver bem com vocês”. Na transição, nem um presidente pudemos eleger, tarefa que foi delegada a um colégio eleitoral. O vencedor da disputa morreu logo em seguida. Só fomos eleger novamente um presidente pelo voto direto em 1989. Desacostumados que estávamos a votar para presidente, após um jejum de 29 anos, acabamos por colocar no poder um corrupto que logo foi impedido de continuar no cargo.

Recentemente, um artigo do jornal Folha de São Paulo, um dos órgãos de imprensa que colaboraram ativamente com o aparato de repressão da ditadura militar, se referiu à ditadura que dominou nosso país por vinte e um anos como “ditabranda”, ou seja, uma ditadura mais branda, se for levado em consideração as demais que estiveram no poder em outras nações latino-americanas. Nossa ditadura teria sido mais branda por ter assassinado menos gente ou se utilizado de medidas menos extremas na repressão, se comparada com as ditaduras chilena e argentina, por exemplo. No entanto, nenhum regime assassino deve ser considerado brando baseado simplesmente no número de indivíduos que matou ou torturou, pois marcas indeléveis ficam no corpo e na mente daqueles que sofreram e foram mutilados, ou nas memórias daqueles em cujos corações ficou a lembrança dos entes queridos que foram assassinados. Portanto, a idéia de “ditabranda” dever ser rechaçada com firmeza por aqueles que pretendem ter alguma honestidade intelectual.

As viúvas da ditadura estão por aí aos milhares, saudosas do tempo em que a vontade popular era suplantada pelo chumbo e pelo porrete. Não se enganem aqueles que pensam que as pessoas mudam suas concepções tão facilmente. Basta uma oportunidade para que sentimentos antidemocráticos, até então latentes, aflorem com violência. Cinco dias após o aniversário de 30 anos da morte do delegado Fleury, ou seja, em 06 de maio último, por exemplo, houve uma missa em homenagem ao notório torturador (clique aqui para ler post anterior no qual citei trechos da biografia do delegado Fleury). No altar da igreja Nossa Senhora de Fátima, no bairro do Sumaré, localizado na capital paulista, foi colocado um quadro de flores no qual havia uma foto de Fleury e uma faixa com os seguintes dizeres: “herói nacional”. Bertold Brecht certa vez disse: “Miserável país aquele que precisa de heróis”. Deste tipo de “herói”, no entanto, acredito que nenhuma nação precise. Recentemente uma rua da cidade paulista de São Carlos foi rebatizada de Sérgio Paranhos Fleury para Dom Hélder Câmara, o que talvez possa ser interpretado como um resgate da memória dos verdadeiros heróis deste país.

A história, na maior parte das vezes, é contada sob o ponto de vista dos vencedores. Acredito que os colaboradores do regime militar golpista saíram vencedores se considerarmos que ficaram impunes dos muitos crimes que cometeram. Assim, muitos fatos desabonadores da credibilidade daquele regime que se dizia promotor do “milagre econômico” foram varridos para debaixo do tapete e lá permanecerão até que vozes corajosas ousem explicitá-los. A tal empreitada têm se proposto alguns cineastas, documentaristas, escritores e outros. Exemplos recentes são os filmes Zuzu Angel e Batismo de Sangue, este último baseado no livro homônimo de Frei Betto.

Em prol do resgate da memória a que me referi acima, convido a você, leitor deste blog, e que for morador da região metropolitana da grande Belo Horizonte, a participar do evento que ocorrerá nesta quarta-feira, 17/06, no Auditório da CEMIG, localizado à Av. Barbacena, 1200, bairro Santo Agostinho. No evento, o teólogo e escritor Frei Betto, acompanhado do religioso Frei Fernando, ambos presos por terem colaborado com movimentos que faziam oposição à ditadura militar, farão o lançamento do livro “Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira”. Trata-se de mais um evento do projeto Sempre Um Papo. Mais detalhes podem ser obtidos aqui.

Nos dias atuais, em que alguns tentam reescrever a história dando-lhe uma versão que absolva torturadores e assassinos, eventos como este são indispensáveis para refrescar nossa memória, evitando que barbaridades como as impetradas pela ditadura militar brasileira se repitam.

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