SER COMUNISTA HOJE



Por Cléber Sérgio de Seixas


De uns dias para cá tenho meditado sobre a questão de ser ou não ser comunista. Diversas interrogações me vêm à mente tais como: "o que significa ser comunista?" ou "é possível mudar alguma coisa sendo um militante socialista nos dias de hoje, sendo que, teoricamente, o socialismo ruiu junto com o Muro de Berlim?" ou "a humanidade está preparada para o socialismo/comunismo?".

Não são questões cujas respostas podem ser dadas em poucas linhas, nem tampouco seria possível respondê-las de forma satisfatória num pequeno artigo neste blog. Contudo gostaria de fazer uma breve reflexão sobre a importância de se ter uma convicção socialista nos dias atuais.

No documentário "Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá" de Sílvio Tendler, o falecido geógrafo Milton Santos disse que, ainda nos dias atuais, era um marxista - o documentário é de 2006 -, já que ao instalar-se a contradição (ricos e pobres, possuidores e não possuidores, abastados e miseráveis, burgueses e proletários, encastelados e sem-teto, empresários e desempregados), o marxismo se faz vivo e necessário. No entanto, Milton Santos se auto denominava um "marxista não-ortodoxo".

Depois de assistir a esta declaração do grande geógrafo negro passei a ponderar sobre a denominação "marxista não-ortodoxo". O que pude depreender do significado do termo é que um marxista de tal estirpe é aquele cujas convicções ideológicas não concordam com a totalidade do pensamento marxista. Por exemplo, há aqueles que abraçam a teoria marxista, mas não abrem mão da crença em Deus, seja qual for a religião professada. Da mesma forma, há aqueles que julgam que Marx se equivocou em alguns pontos de sua teoria e em algumas de suas previsões quanto ao futuro do sistema capitalista e quanto ao surgimento do sistema socialista/comunista. Tal como o saudoso professor Milton Santos, me considero um "marxista não-ortodoxo", visto que, apesar de ter convicções comunistas, continuo crendo em Deus, embora atualmente não siga nenhuma religião (cliquem aqui e aqui para ler meu testemunho). Sim, um marxista! Em pleno século XXI após a "derrocada" do socialismo em praticamente todo o mundo!

Muitos vão afirmar que o socialismo foi ultrapassado e falhou nos objetivos a que se propunha e, em lugar de instaurar uma nova ordem mundial, calcada pelo princípio da igualdade, deu lugar a regimes que promoveram desde terríveis expurgos, passando pelo culto à personalidade, pela burocratização e corrupção estatais e pela promoção do genocídio de milhões de indivíduos. É fundamental dizer que, feitas algumas ressalvas, o socialismo - doravante chamarei de socialismo real, para diferenciar do socialismo conforme teorizaram Marx e outros socialistas clássicos em seus escritos - realmente foi vítima do próprio veneno, vindo à falência devido a erros tais como tentar construir um governo em nome do povo e não do povo e com o povo, retirando deste a liberdade de escolha e de expressão.

Por outro lado, alguns dos méritos do socialismo real foram socializar os bens, distribuir a renda e aumentar o acesso a serviços públicos como educação e saúde. Porém, ao fazê-lo, cometeu o erro crasso de recorrer a métodos espúrios, tolhendo todo resquício de liberdade e escolha individuais. Uma amostra de tais métodos veio à tona em 1956, durante o XX Congresso do PCUS, quando Kruschev denunciou os crimes cometidos por Stálin, crimes que iam da eliminação de adversários políticos a assassinatos de civis, muitos dos quais em campos de trabalhos forçados. Nos anos 60, Mao Tsé Tung, o "grande timoneiro" levava a democracia chinesa ao naufrágio ao instituir a Revolução Cultural. Já nos anos 70, Pol Pot e seu Khmer Vermelho levaram milhões de patrícios ao genocídio numa espécie de eugenia ideológica (sobre a história recente do Camboja é recomendável assistir ao filme "Os Gritos do Silêncio"). Os militantes socialistas de então não podiam supor que "a nova sociedade" estivesse sendo erguida sobre tantos expurgos, massacres, prisões, torturas e assassinatos.

Hoje, do alto dos conhecimentos advindos da inserção na sociedade da informação - não confundir "sociedade da informação" com "sociedade do conhecimento" - é-nos fácil olhar para trás e condenar os erros do socialismo real. É fácil constatar que Stálin errou, que Mao e Pol Pot foram longe demais, que Fidel Castro equivocou-se em alguns aspectos e que Allende enveredou-se por alguns caminhos tortuosos. Contudo, por mais que tenham se equivocado os supramencionados, devemos inserir suas opções e seus erros sempre no contexto de suas épocas e indagar: tiveram outras alternativas? Seus oponentes deram-lhes chance de diálogo? Relativizar, no entanto, não significa concordar com os excessos. Por exemplo, na União Soviética sob Stálin havia outra forma de industrializar o país senão da forma como se deu - forçada e forçosa -, num país que era fundamentalmente agrário e que necessitava dar um hercúleo salto tecnológico para que a revolução pudesse sobreviver?

Da mesma forma que o socialismo real deve fazer uma autocrítica, devemos cobrar do capitalismo, sobretudo de sua variante atual, o neoliberalismo, a mesma auto-análise. Após a derrocada do socialismo real no leste europeu, simbolicamente ilustrada pela queda da Muro de Berlim, o capitalismo ficou confortavelmente assentado num mundo unipolar. Esta unipolaridade levou ao extremo a ideologia do individualismo, precariamente escorada na teoria de uma suposta liberdade que o sistema outorgaria àqueles sob sua égide; teoria esta que fora elevada à categoria de religião por alguns gurus dentre os quais convém destacar o celebrado Francis Fukuiama, um dos primeiros a alardear o capitalismo e seu estágio neoliberal como sinônimos de "fim da história", qual seja, sinônimo do triunfo do ideário capitalista.

O resultado da unipolidaridade econômica e política, no cenário da globalização, no entanto, é um mundo cujo fosso entre ricos e pobres torna-se cada vez maior. A renda concentrou-se ainda mais nas mãos de poucos, enquanto muitos, a maioria, padecem de pobreza e fome crônicas. A globalização garante fluidez ao capital e, por meio de seus falsos profetas, apregoa que o mundo é uma aldeia global. No entanto, nessa aldeia, alguns caciques mantém em suas mãos a maioria das riquezas geradas pela tribo enquanto uma massa de índios se vê desprovida do mais elementar para sua existência digna. Não se pode falar em direitos humanos num mundo onde a grande maioria sequer chegou ao estágio de direitos animais tais como comer, beber e abrigar-se.

Assim sendo, como falar em "fim da história"? Como concordar que o sistema capitalista é o melhor para a humanidade sem que o mesmo tenha garantido a uma parcela considerável da população mundial o acesso a uma vida digna?

A recente crise econômica mundial, gestada e cevada no mais capitalista dos países, os Estados Unidos, abalou os alicerces de um sistema que sempre primou por condenar a intervenção do Estado na economia. O capitalismo, desde teóricos clássicos como Adam Smith, sempre apresentou a "mão invisível do mercado" como um de seus paradigmas fundamentais. No entanto, o que salvou o sistema capitalista estadunidense da bancarrota foi - e tem sido - a intervenção estatal. Já disse em outro texto (clique aqui para ler meu texto intitulado "Homo Davos em Extinção") que a mão do mercado só é invisível para os pobres, sendo bem visível aos que estão no topo da pirâmide capitalista.

Diante deste cenário em que os principais sistemas econômicos e políticos contemporâneos falharam, apesar de terem triunfado sob alguns aspectos, deve-se fazer a seguinte indagação: qual dos dois reúne as condições de garantir mais felicidade à maioria dos seres humanos? A resposta talvez passe por um sistema que resulte da interseção dos dois. São inquestionáveis os avanços tecnológicos que o capitalismo trouxe à humanidade, da mesma forma que também não se pode questionar a qualidade de vida superior que os países sob o socialismo outorgaram a seus cidadãos. Sobre a falência de ambos os sistemas, Frei Betto se manifesta da seguinte forma na sua magistral obra A Mosca Azul: "Por que o socialismo veio abaixo no Leste europeu? O capitalismo tem a esperteza de socializar o sonho (vide Hollywood) e privatizar os bens materiais, sobretudo a renda. O socialismo cometeu o erro contrário: socializou os bens materiais e a renda, mas privatizou o sonho. Só o Birô Político podia sonhar, assim mesmo dentro dos cânones. Os demais - artistas, intelectuais, sindicalistas, religiosos - deveriam sonhar os sonhos dos chefes do Partido ou suportar em silêncio seus pesadelos [...]. O marxismo idealista, ao elevar o Estado à condição de Espírito Absoluto, tratou de incorporar o pobretariado às vias de acesso da inclusão social (educação, saúde, trabalho etc), porém ao preço de destituí-lo de seu direito de crítica e acesso ao Estado. O socialismo dotou o Estado de condição divina e o governo erigiu-se em dogma de fé".

Dito isto, o que significa ser de esquerda hoje? Quando se protesta pelos direitos dos moradores de comunidades quilombolas, quando se vai às ruas para pedir o fim de uma economia que para se sustentar agride violentamente o meio ambiente, quando se participa de passeatas em prol dos direitos civis dos homossexuais, quando cobra-se uma maior pluralidade na grande mídia e a inclusão digital de camadas pobres da população ou quando se exige do governo políticas públicas de inclusão dos afrodescendentes, os militantes são classificados como "de esquerda". O sistema capitalista, sobretudo atualmente em sua sanha de concentração do capital nas mãos de poucos, arrasta para a esquerda várias causas que até a pouco tempo não seriam qualificadas como tal, além de fornecer às mesmas o denominador comum necessário à militância conjunta.

É possível ser um marxista e um cristão ao mesmo tempo? Respondo fazendo minhas as palavras de Frei Betto no já citado A Mosca Azul: "Minha fé no socialismo nada tem a ver com meus sentimentos religiosos. Funda-se na arraigada convicção de que o capitalismo é intrinsecamente inapto a construir um mundo de justiça e liberdade [...]. Meu socialismo nutre-se mais da comunidade primitiva dos cristãos, descrita em Atos dos Apóstolos, que na teoria do valor. Sinto-me mais próximo de Proudhon que de Marx [...] Não creio no deus que admite seus filhos divididos entre miseráveis e abastados".

Há alguns dias ouvi de uma pessoa, em tom de galhofa, a afirmação de que se eu me considerava um comunista, deveria dar tudo o que tenho para outros. A pessoa que me disse isto é um evangélico e, segundo o conhecimento que tenho, os evangélicos deveriam ser os primeiros a louvar tal atitude e não ridicularizá-la, visto que a própria Bíblia dá um exemplo dos primeiros convertidos como pessoas que "estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade” (At 2:44,45). Expliquei a esta pessoa que mesmo que eu fizesse isso os problemas sociais não seriam sanados, visto que tal atitude seria um evento isolado num turbilhão de variáveis e fatos que compõem uma sociedade injusta. Ademais, os socialistas utópicos já tentaram isso e não lograram êxito.

Um militante socialista, hoje, é uma pessoa comum, que se veste como os demais e consome os mesmos produtos que os outros, porém tem uma forma diferente de encarar o mundo e, de alguma forma, dá sua contribuição para que surja uma alternativa futura ao capitalismo. Ser comunista hoje não significa não freqüentar cinemas, não tomar Coca-Cola ou não ter um IPHONE. Ser comunista atualmente é possuir bens e valorizá-los pelos seus valores de uso, e não pelo status que os mesmos possam conferir a seu possuidor. Ser comunista nos dias atuais é usar ou consumir produtos como os supracitados sem, no entanto, ser cooptado pelo consumismo. Enfim, ser comunista em tempos de globalização é lutar com as armas que dispuser contra as mazelas da sociedade capitalista, indignando-se com as causas que perpetuam as desigualdades sociais, ciente de que tal luta pode ser apenas o semear, podendo estar a colheita numa dimensão espaço temporal distinta da existência pessoal.

Comentários

Anônimo disse…
Você simplesmente está querendo defender os maiores assassinos da história como se houvesse justificativa para as atrocidades que cometeram e que cometem alguns até hoje.
Quem algum dia acreditou no comunismo deve compreender que na realidade ele nunca foi existiu em nenhum pais e sim ditaduras em benefício de poucos.
Anônimo disse…
Belo texto, belo blog tambem. Queria apenas te parabenizar e pedir que ignore comentarios inescrupulosos como o do anonimo acima, que sem nem entender como, defende a conservação de um sistema que assassina muito mais que qlquer ideologia. Capitalismo massacrante!
Anônimo disse…
Texto muito bem escrito e conceituado, parabens. Voce tambem conseguiu resumir o que penso sobre socialismo/comunsimo, sinceramente, eh agradavel aos meus olhos ver alguem que compartilha as ideias comunistas e socialistas contemporâneas, em prol da evoluçao humana de todos e nao apenas de uma parcela.
Michelle disse…
Muito bom texto. Bem sensato. Embora não concorde com alguns pontos, você conseguiu explanar muito bem seu ponto de vista. Isto é dialética.