CASSARAM A REPRESSÃO POLÍTICA

Por Mino Carta

Acabo de verificar que não houve repressão política durante a ditadura que mandou de 1964 a 1985. Deduzo a partir da leitura do texto final do decreto que institui o Programa Nacional de Direitos Humanos. A minoria privilegiada deste país regozija-se com isso. Privilegiada e, se for preciso, golpista. E o resto que se moa.

Chamaram-na de revolução. Depois, constrangidos, admitiram: ditadura militar. Ora, ora, quem foi convocado para fazer o serviço sujo foram os gendarmes, por trás estavam eles mesmos, os engravatados e verdadeiros donos do poder.

E como haverá de reagir a esquerda nativa diante de mais este assalto à verdade factual? Não é o caso de se esperar demais da capacidade de reação da esquerda nativa. É a mesma que até hoje não consegue entender a diferença entre o ex-terrorista italiano Cesare Battisti e outros da nossa Resistência, por exemplo, Genoino, Franklin Martins, Dilma Rousseff.

Não se trata de contribuição decisiva para a inteligência brasileira. Há outras, do lado oposto, truculentas. Por exemplo. A alteração do texto do decreto decorre de uma exigência do ministro Nelson Jobim, disposto a se apresentar como porta-voz das Forças Armadas. Destas a pretensão de que qualquer investigação de violações dos Direitos Humanos seja executada também do lado de quem pegou em armas para enfrentar o Terror de Estado. Teríamos de apurar, portanto, as responsabilidades dos perseguidos e dos torturados? Mas já não foram perseguidos e torturados? Mais uma colaboração à construção de um Febeapá sinistro. Trágico.

Lamentável trajetória a do decreto, a rigor esboço de declaração de intenções. Oceanos hão de passar debaixo desta ponte, e haja ponte. A rigor, pretende estabelecer algumas regras destinadas a assentar um sistema democrático e laico digno da contemporaneidade. Não contém maiores surpresas se confrontado com os mandamentos em vigor em outros países mais adiantados destes pontos de vista.

Vamos do aborto (que provavelmente voltará ao status quo ante) à união civil entre homossexuais, à retirada de quaisquer símbolos religiosos dos próprios do Estado. E assim por diante. Causa-me espécie, isto sim, o que diz respeito aos meios de comunicação. Que o Estado possa retirar concessões à emissora de televisão e rádio soa perfeitamente admissível, a se considerar o mandamento brasileiro. Não lhe cabe, contudo, elaborar o ranking de quem da mídia defende a contento os Direitos Humanos e de quantos não os respeitam.

Todos aqueles que se consideram atingidos pelo decreto esperneiam. A Igreja e os ruralistas em primeiro lugar. Quanto aos barões midiáticos, o governo ofereceu um prato oceânico para protestos furibundos. No mais, sobra a questão central, a chamada Lei da Anistia, imposta pela própria ditadura e, portanto, inaceitável por um regime democrático, desde que autêntico e a vigorar em benefício de todos. Sem memória, não há povo habilitado a alcançar liberdade e igualdade. A memória tem de ser recuperada por completo para construir o futuro a partir dela. Isto vale para o indivíduo no singular e para as nações no plural.

Outros países sul-americanos reconstituíram o passado de formas diferentes e, no entanto, eficazes. Estão nitidamente à frente do Brasil e representam um exemplo recomendável. Estamos é muito atrasados. Tíbios e assustadiços, prisioneiros de inflexões, vezos, temores muito antigos, totalmente passadistas, anacrônicos, às vezes hipócritas e sempre inadequados ao nosso tempo.

O golpe de 1964, de cujas consequências ainda padecemos, foi a mais recente desgraça brasileira, depois da colonização predatória, da escravidão, da Independência a resultar de uma briga familiar diante da indiferença do povo, da Proclamação da República manu militari. Ah, sim, não me consta que na Alemanha haja uma avenida Hitler e na Itália uma praça Mussolini. Já na Rússia, as estátuas de Stalin foram derrubadas. Em Brasília, entretanto, há uma ponte Costa e Silva, o ditador que assinou o AI-5, sobre o Lago Sul. Em São Paulo, uma rua Sérgio Fleury, celebrado mestre em tortura.

Fonte: revista Carta Capital

Comentários