OUSADIA E SOFRIMENTO NO HAITI

Foto: Jornal Estado de Minas

Por Rogério Simões

É difícil dizer ao certo quando começou o sofrimento do Haiti. Talvez em 1492, quando Cristóvão Colombo desembarcou na ilha Hispaniola e deu o pontapé inicial a séculos de colonialismo, exploração e interferência internacional. Também pode-se apontar o ano de 1697, quando França e Espanha dividiram a ilha, entre o que se tornariam Haiti e República Dominicana, como parte de um acordo para acomodar seus interesses. Outros ainda podem dizer que tal sofrimento começou mesmo em 1804, quando os escravos negros, então dominados pelos franceses, ousaram declarar sua independência política, um feito único no mundo. Nos rostos de cada vítima do devastador terremoto desta semana, parece haver um pouco dessa história, marcada pela exploração, externa e interna, de um povo hoje atolado na pobreza absoluta.

Muitos países usaram o Haiti para interesses próprios desde a chegada de Colombo, particularmente Espanha, França e Estados Unidos. A Espanha lançou a moda com o uso dos nativos para a extração de recursos naturais, mas posteriormente abandonou o território. Os franceses, mesmo após dois séculos de exploração colonial, exigiram dos haitianos um pagamento de indenização bilionária, décadas depois de sua independência, como exigência para reconhecê-la. Os Estados Unidos invadiram o país em 1915, mantendo suas tropas até 1934.

Após o fim da sangrenta dinastia dos Duvalier (Papa Doc, Baby Doc e seus capangas Tonton Macoutes), que dominou o país dos anos 50 aos 80, a interferência internacional mudou um pouco de estilo. Em 1994, a Casa Branca de Bill Clinton recolocou o presidente democraticamente eleito Jean-Bertrand Aristide na Presidência, numa ação de apoio à vítima de um golpe militar. Dez anos depois, entretanto, a Casa Branca de George W. Bush retirou o mesmo Aristide do país e o levou para o exílio, numa manobra mal explicada até hoje. O presidente deposto alegou ter sido sequestrado, mas Washington disse que ele pediu para sair. A engajada jornalista canadense Naomi Klein escreveu, um ano depois, que Aristide atribui sua queda à sua recusa a atender às demandas dos Estados Unidos para privatizar o Estado haitiano. O mesmo Aristide, pouco antes do abrupto fim do seu último governo, peitou outra potência internacional, ao exigir da França bilhões de dólares como indenização por aquele pagamento forçado no século 19, logo após a independência haitiana. A França não gostou e só permitiu que o Conselho de Segurança da ONU aprovasse ajuda militar ao Haiti depois da saída do presidente.

Foi quando o Brasil entrou na história, chefiando a força de ajuda das Nações Unidas que está no país desde 2004. Na semana passada, após seis anos com a presença da bandeira azul da ONU, o Haiti continuava uma nação paupérrima, que mal funcionava, mas que pelo menos contava com órgãos de governo, um Parlamento, força policial. Após o terremoto, com a destruição completa da capital, Porto Príncipe, nem isso existe mais. A nação de escravos negros rebeldes nasceu de uma ousadia contra o poder colonial e parece já ter pagado bastante caro por isso, com exploração financeira, invasões, ditaduras e golpes. Quando parecia que o Haiti não tinha mais nada a perder, a natureza testa de vez sua resistência, e o mundo (Estados Unidos, Brasil, França e muitos outros) é chamado para ajudá-lo. Sozinho, o Haiti dificilmente sobreviverá.

Fonte: BBC Brasil

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