MEU TESTEMUNHO - SEGUNDA PARTE

Cristão e comunista: é possível?

Por Cléber Sérgio de Seixas

Em minha adolescência fui um rapaz tímido que, em conseqüência, teve poucas amizades. Lá pelos 16 anos, em plena crise da adolescência, indagações clássicas vieram à tona, tais como “de onde viemos e para onde vamos?” ou “qual o tamanho do universo?” ou “quando o que conhecemos como tempo iniciou?” ou mesmo “se Deus criou o universo, quem criou Deus?”. Foi no contexto destas indagações que conheci algumas pessoas que pregaram o evangelho para mim. Falaram de uma Igreja que não tinha nome, já que o termo Igreja (do grego ekklesia, que quer dizer “chamados para fora”) em si já é suficiente para denotar um grupo de pessoas separadas do mundo por Deus, devendo assim ter um viver diferente das pessoas mundanas, qual seja, um viver mais justo. Converti-me e abracei aquela causa por 17 anos, tendo me impulsionado mais o quesito de justiça e fraternidade, ancorado na igualdade, que os anseios de salvação individual.

Dediquei toda a minha juventude àquela causa. Não direi aqui o nome da Igreja por respeito e estima aos que lá ainda se reúnem, dentre os quais se encontram meus sogros, e com os quais mantenho relativa amizade. Fiz de tudo um pouco naqueles anos: subi em montes à noite para orar; cooperei com os irmãos nos mais variados serviços, do cuidado com crianças, passando pelos jovens, chegando a servir na parte financeira da Igreja, além de ter ministrado mensagens por várias vezes. Neste tempo procurei ser o mais fiel possível, tendo pautado minha vida e minhas decisões – até mesmo profissionais e sentimentais – sempre por aquilo que eu acreditava ser a vontade de Deus e da Igreja. Nesse ínterim, conheci a mulher que se tornou minha esposa, a que tanto amo e estimo e que veio a se constituir em minha companheira de convicções sócio-políticas e afins.

No entanto, durante todo o tempo em que me dedicava à vida na Igreja, algumas interrogações sempre me atormentavam e não tinham resposta nem na Bíblia nem no falar dos irmãos. Uma delas é a questão do papel da mulher, colocada na Bíblia como o ser humano que precisa se submeter ao marido, cuidar do mesmo, ser-lhe submissa quase incondicionalmente, cuidar da casa e dos filhos etc porque assim diz a Bíblia. Se tomada ao pé da letra, a concepção bíblica para a mulher é aquela que foi cantada nos versos de Mário Lago, qual seja, “Amélia que era mulher de verdade”, aquela que não tinha menor vaidade e achava bonito não ter o que comer.

Outra questão que sempre me assolou é a da justificação pela fé e não pelas obras. Assim posto, as obras pelas obras seriam obras mortas, obras da carne. No entanto a epístola de Tiago nos diz o seguinte: “Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?” (Ti 2:14). Em outro trecho, Tiago ilustra com o exemplo de Abraão: “Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou...” (Ti 2:21,22). Por fim Tiago finaliza sua posição sobre o assunto da seguinte forma: “Verificais que uma pessoa é justificada por suas obras e não por fé somente (...) Porque , assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta”. Diante dos trechos supramencionados, podemos concluir que o simples fato de crer em Jesus, tendo uma mudança de vida e de caráter, se for uma experiência desacompanhada das obras (desde o sentido da justeza de caráter, exteriorizada na justiça dos atos, até a prática de boas obras para com o próximo, incluída aí a caridade), tornar-se-á uma fé vazia de sentido.

Assim interpretando, digo, com toda experiência de 17 anos dedicados à Igreja e tendo sempre buscado ter um viver cristão fervoroso, que há pessoas para as quais a salvação se resume em participar de reuniões cristãs, cantar belos hinos, motivar-se com as belas pregações e com o calor dos cultos. O outro lado da moeda é relegado, ou seja, aquele que presume que a fé tem que redundar na solidariedade, na humildade, no respeito ao próximo, no amor à causa da justiça, incluindo aí a social, no altruísmo, no pedir perdão ao próximo quando da prática de ofensas (mesmo em se tratando do pai pedir perdão ao filho por ofensas infligidas). Em outras palavras, quando se trata de fazer obras, muitos cristãos se abrigam confortavelmente debaixo da sombra da frondosa árvore em que transmutaram o termo fé, ou seja, quando se quer fugir das obras, apela-se à fé. Explico: se o cristão não é perfeito, tendo seus defeitos, mas possui fé, Deus há de, um dia, aperfeiçoá-lo. Por hora Deus o perdoa e ele prossegue em sua trajetória cristã, mesmo com os erros advindos dos defeitos se repetindo. Se somos edifícios inacabados e em nossa fachada se encontra uma placa com os dizeres “estamos em obras”, devemos perguntar para quando está previsto o término das mesmas. Conheço cristãos cujas obras ainda estão inacabadas e que ainda persistem no discurso “somos assim mesmo, mas Deus nos ama, nos perdoa e nos usa do jeito que somos”. Passam-se 10, 20, 30 anos e o indivíduo continua em obras, com os mesmos desvios de caráter e se justificando da mesma forma. Repito o que disse no texto O Maior Comunista é Deus, que não se trata de cobrar a perfeição de ninguém e sim de condenar o uso da condição de edifício inacabado para continuar errando. Feitas estas considerações pergunto: o que vem primeiro, a fé ou as obras? Deixo a resposta a cargo da consciência dos me lêem.

Em meio às várias interrogações que me assolavam e durante os anos mais prolíferos de minha trajetória como cristão praticante, conheci os clássicos da literatura socialista e comunista. Li O Capital de Marx, o Manifesto Comunista de Marx e Engels e vários outros livros da mesma vertente, de Gramsci a Lênin. Após tais leituras, convenci-me que o melhor sistema econômico e social para a humanidade é o socialismo e sua progressão – ou “definhamento”, tal qual assevera Lênin – o comunismo.

Contudo muitos cristãos vão dizer, arraigados que estão no mais profundo preconceito e ignorância, que o comunismo é “coisa do diabo” ou “os comunistas comem crianças”. Para fazerem tais afirmações, podem estar se baseando no socialismo tal qual existiu em países como a extinta União Soviética, na Alemanha Oriental, na China de Mao, no Camboja do Khmer Vermelho, vertentes do que chamo de deturpação do que há de mais elevado no socialismo. Se assim for, concordarei com eles em parte, visto que tenho conhecimento do que ocorreu nessas experiências socialistas fracassadas. A meu ver, porém, o socialismo, em sua essência - que, diga-se de passagem, é anterior a Marx e ao ateísmo - é um sistema muito mais próximo do que acredito ser a vontade de Deus do que o capitalismo, simplesmente por que o primeiro tem como base os princípios de igualdade, altruísmo e solidariedade. O capitalismo – que minha esposa apelidou de “capetalismo” - por seu turno, se baseia nos princípios de competição, acumulação e egoísmo, concentrando todas as suas energias no individual em detrimento do social.

Foi no rastro dessas considerações que deixei o meio cristão e hoje me encontro desvinculado de qualquer instituição cristã. O rompimento não foi devido a nenhuma contenda com quem quer que seja, embora tenha lá os meus desafetos. Rompi com os paradigmas passados por não acreditar mais que eles detenham as respostas que procuro com relação à justiça social. Em decorrência desta escolha, tanto eu quanto minha esposa, sofremos hoje uma espécie de apartheid por parte daqueles com quem outrora mantínhamos contato, ou seja, os membros da Igreja. Fomos colocados pelos irmãos numa espécie de quarentena pelo fato de pensarmos de forma um pouco diferente – mas não totalmente – do que pensávamos antes. Não deixei de ser um cristão assim como não pretendo deixar de ser um comunista. Não deixarei de ser um cristão por causa dos preceitos marxistas que identificam Deus com uma invenção humana, da mesma forma que não deixarei de ser comunista só porque a maioria diz que o comunismo é coisa do demônio. Foi nessa hibridez de pensamentos que escrevi o texto O Maior Comunista é Deus. Uma espécie de desabafo e confissão de minhas atuais crenças.

Se estar do lado dos oprimidos, dos que não têm, dos que são espoliados dia a dia pelos poderosos de plantão, me trará como salário a condenação, estou disposto a arcar com as consequências, fazendo-o com a consciência de quem almeja a justiça, a paz, a liberdade, o ser não só para um número reduzido de indivíduos, os que são, mas para a maioria da humanidade, os que hoje não são ou nada são.

Portanto, a minha trajetória é exatamente oposta à do leitor de Portugal José Fialho, a quem chamo agora de companheiro e irmão pelo fato de almejarmos a mesma coisa, porém de formas diferentes. Uma das diferenças cruciais entre cristãos e comunistas é quanto à dimensão espaço-temporal na qual será implantada a justiça – para os cristãos será numa dimensão chamada pelo apóstolo João de Nova Jerusalém, novos céus e nova terra onde habitará justiça, e para os comunistas será numa etapa superior chamada de comunismo, onde não mais existirão classes a oprimir. No entanto, cristãos e comunistas podem se abraçar, dar as mãos, caminharem juntos, lutarem juntos e comungarem juntos se procurarem um ponto em comum. E este denominador comum, ou seja, o que ambos almejam, se resume em uma só palavra: justiça.

Comentários

Unknown disse…
... eu ví o seu comentário e achei interessante, mas acho que faltou pesquisa da sua parte para afirmar tais coisas como cristianismo e comunismo são compativeis, vou te contar a histórinha da teologia da libertação:
_certo dia um padre falou, chega de injustiças de fome e pobreza o comunismo realmente é certo!
_e Leonardo boff resolveu unir comunismo a igreja cristã católica, para ser mais especifica. Ele ensaiava a revolução até parecer "perigoso" o bastante para incomodar o governo local. Sofrendo vários "ataques" do estado resolve pedir o apoio do vaticano, que não apoia a tal teologia da libertação com o seguinte argumento:
_que tal teologia ia contra a doutrina da igreja deturpava a palavra de Deus, colocava o homem contra outros homens e tirava a pureza da humildade e o bem de ser pobre. Mas isso era na verdade um jeito bonitinho de diser que ele não iriam apoiar isso que o homen não era dono de sí e sim Deus dono do homen parece errado, certo? E tem mais é contraditório acreditar em padres de acordo com o comunismo pois não há homem melhor ou maio que o outro para o comunismo e detro da igreja existe a hierarquia que não pode ser quebrada pois é legitimada atravez de Deus.
_então com a teologia da libertação condenada e Leonard boff expulso da igreja, ele acaba se tornando animista que é uma bobagem (acredita na natureza como um ser superior). E com isso toda a ameaça e a história da TL se acaba, ainda há pessoas que tentam revivê_la mas acredito que não seja possivel. Você criaria uma religião independente sem lider religioso que pudesse se adeptar ao comunismo marxisra? Essa é uma das questões. Você colocaria marx em uma religião mesmo tendo saido da boca dele que o ópio do povo é a religião?