Um homem diante do espetáculo da fome - homenagem a Josué de Castro


"Sou um homem interessado no espetáculo do mundo"

Por Cléber Sérgio de Seixas

Uma criança revira sacos de lixo jogados em frente ao edifício de uma grande cidade. Próximos dela estão seus pais, silenciosamente engajados na mesma ingrata e humilhante empreitada: encontrar em meio àquilo que outros descartaram algo que lhes possa saciar a fome. Cães rodeiam esperando oportunidade para fazer o mesmo. Neste quadro trágico, cães e homens estão em infame igualdade, procurando, ambos, satisfazer o instinto mais primário e essencial de qualquer ser vivo: o de se alimentar. O espetáculo é dos mais deprimentes, porém necessário àqueles que o protagonizam, pois é direito de todos sobreviver, mesmo que à custa das sobras alheias.

Dentre as muitas tragédias que assolam a humanidade, talvez a mais dantesca seja a fome. As guerras, as epidemias e as catástrofes naturais dizimam milhares com repercussão imediata e quase instantânea graças à velocidade dos meios de comunicação. Já a fome é mais sutil, age na calada, sem tanto estrépito, não tão célere quanto a guerra, porém não menos danosa e mortal. A cada ano várias bombas atômicas explodem sobre os povos e ninguém fica sabendo. Não são como aquelas que produziram os espetaculares cogumelos atômicos sobre o Japão. São as bombas da miséria, nada espetaculares, que explodem sem destruir geograficamente; danificam os ventres, roubam dos homens o brilho dos rostos e a sensatez, abalando-lhes o moral e a sobriedade. A fome é o subdesenvolvimento dos povos no âmbito alimentar.
Quando o presidente Lula fala a respeito da fome, o faz com conhecimento de causa pois passara ele mesmo pelas suas agruras, tendo sido um dos retirantes da seca, fugitivo da miséria que afligiu e aflige o sertão e semi-árido nordestino. Dessa forma, seus discursos sobre a necessidade do combate à fome, apesar de muitas vezes recheados de um português sofrível, arrebatam mais do que qualquer comentário de “intelectualóide” de gabinete e impressionam mais que estatísticas frias da FAO. Por quê? Todo discurso embasado na experiência tem mais peso que teorias aprendidas em salas de aula. A fome não é objeto de retórica, é um problema sócio-econômico grave que aflige nosso país com intensidade avassaladora, e por isso é algo a ser encarado com seriedade, paixão e, sobretudo, com o equilíbrio de uma análise científico-acadêmica.

A esta análise Josué Apolônio de Castro dedicou toda a sua vida. Assim como o presidente Lula, ele sentira na própria pele o flagelo da fome. Também ele e seus familiares foram obrigados ao êxodo humilhante dos que fogem para sobreviver - é impressionante que o bicho homem, há séculos, tenha deixado de ser nômade devido ao domínio que exerce sobre o meio ambiente e, no entanto, ainda ser possível ver multidões serem banidas de terras incultas, áridas, como turbas impotentes diante das intempéries de certas regiões, miríades humanas derrotadas pela natureza. É triste ver o retirante fugindo da fome explícita no campo, a fome da terra arrasada, para encontrá-la novamente, sob outra face, nos centros urbanos, onde impera uma fome hipócrita, camuflada: a fome em meio à abundância.

Os mangues do Capibaribe foram o palco onde Josué de Castro iniciou sua conscientização acerca das terríveis conseqüências da fome. Este ambiente foi, segundo ele mesmo afirma, sua Sorbonne, sua universidade da vida. Lá ele viu de perto a simbiose entre homens e caranguejos, ambos atolados em pútrida lama para sobreviver, em um impressionante mutualismo – ainda hoje os homens se transformam em caranguejos e vice-versa nas lamas do rio que corta a capital pernambucna.

Josué de Castro delineou bem as modalidades de fome existentes, mostrando que se pode morrer de fome não apenas sendo privado de alimentação, mas também, a longo prazo, tendo-se uma vida inteira de alimentação de baixa qualidade calórica e protéica. Derrubou o preconceito de se falar sobre fome e desnutrição neste país, e que também é possível ser intelectual ao abordar tais temas. Em seu livro Geografia da Fome soube como ninguém mapear os bolsões de fome deste do Brasil, identificando as áreas de maior concentração de desnutridos e subnutridos. Mostrou que a fome não é resultado de superpopulação, como pretendem os seguidores de Malthus, os quais visam com suas teorias, provar que os famintos são famintos porque se reproduzem com muita intensidade sendo, portanto, os responsáveis pela própria desgraça. Expressou assim a questão: “Os neomalthusianos, ao afirmarem que o mundo vive faminto e está condenado a perecer numa epidemia total de fome porque os homens não controlam de maneira adequada os nascimentos de novos seres humanos, não fazem mais do que atribuir a culpa da fome aos próprios famintos”.
Josué de Castro discursando na FAO
Josué de Castro sinalizou que a fome dos povos não se deve somente ao fato de não haver alimentos suficientes para eles, mas também à falta de condições daqueles em adquirí-los. Em poucas palavras: talvez haja alimentos suficientes para todos, mas foge à lógica capitalista a produção com o fim de satisfazer necessidades sociais, pois o objetivo real é a venda com o maior lucro possível. Vemos isto a todo momento, bastando observar os vários navios que deixam nossos portos carregados de víveres indo abastecer o mercado exterior, enquanto populações inteiras país adentro esperam encontrar em suas mesas o mais básico dos cardápios, tendo de valer-se, para isso, muitas vezes, do assistencialismo governamental com seus planos de combate à fome de questionável eficácia.

Se muitos teorizaram sobre assuntos como o subdesenvolvimento, a condição de exploração da classe operária no sistema capitalista, a situação de exclusão da América Latina no contexto mundial, Josué de Castro teorizou sobre a necessidade mais básica dos seres humanos. Com seus textos, livros e ensaios pavimentou o caminho para os estudos dos fenômenos causadores da fome, posicionando-os na intersecção de Biologia, Sociologia e Economia. Não perdeu tempo com utopias, apenas analisou cientificamente a questão para, a partir desta análise, prover alternativas que conduzissem à solução do problema da fome no mundo.

Ao ver integrantes do MST brandindo facões e foices, entoando loas à Reforma Agrária, lutando pela fixação do homem no campo, pela distribuição justa da terra, deve-se lembrar que Josué de Castro já defrontava este problema em seu tempo. Disse ele: ”É que cerca de 60% das propriedades agrícolas no Brasil são constituídas por glebas de áreas superiores a 50 hectares de terra, das quais 20% possuem mais de 10.000 hectares. No recenseamento de 1950 ficou evidenciada a existência no Brasil de algumas dezenas de propriedades que são verdadeiras capitanias feudais: propriedades com mais de 100.000 hectares de extensão”. E ainda: ”Do latifúndio decorre também a existência das grandes massas dos sem-terra, dos que trabalham na terra alheia, como assalariados ou como servos explorados por esta engrenagem econômica de tipo feudal. Por sua vez, o minifúndio significa a exploração antieconômica da terra, a miséria crônica das culturas de subsistência que não dão para matar a fome da família”. Enquanto o latifúndio, ao se mecanizar, vomita seres humanos nos grandes centros urbanos, fazendo engrossar as estatísticas sobre famintos, desempregados, subempregados e criminosos, o minifúndio abandonado a própria sorte não consegue cumprir seu papel social de fixar o homem no campo. Não é preciso dizer que com afirmações como a acima transcrita, Josué de Castro incomodou a muitos grandes proprietários de terra, gente que sempre foi poderosa e influente no Brasil.

Josué de Castro acumulou funções, livros e prêmios durante toda a sua vida. Por vezes agraciado, por vezes execrado, o certo é que as idéias deste ilustre brasileiro inspiraram a muitos, tornaram-se bandeira de tantos outros mas também, em algum momento, entraram em choque com interesses particulares de indivíduos que viam nelas uma ameaça ao seu status quo. Com a instauração do regime militar, Castro teve seus direitos políticos cassados.

No ano em que militares invadiram o palácio de La Moneda, pondo fim à experiência socialista chilena, no mesmo mês da morte do grande poeta Pablo Neruda, e no mesmo setembro de 1973 em que a UNICEF anunciava que pelo menos 150 mil pessoas morreram de fome na Etiópia em conseqüência da grande seca nas províncias de Welo e Tigre, deixou-nos órfãos Josué de Castro. Morreu no exílio, longe do país natal cujos problemas ele tanto conhecia.

Em tempos de Fome Zero, lembrar os estudos e idéias de Josué de Castro é mais que atual. Se muitas de suas análises já foram ultrapassadas, seu legado de luta contra a fome e o subdesenvolvimento permanece incólume. Urge ser lembrado como o brasileiro que não considerou perda de tempo analisar com profundidade e cientificismo uma questão que para muitos era tabu, e como alguém que não foi apenas expectador passivo diante do deprimente e destrutivo espetáculo da fome. Merece, por isso, lugar de destaque no panteão dos grandes homens, junto a brasileiros célebres como Darcy Ribeiro, Paulo Freire, Caio Prado Júnior, Gilberto Freire, Luiz Carlos Prestes e tantos outros que apontaram para o horizonte de um mundo mais igualitário e justo.

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