SOBRE A PERIFERIA

Por Cléber Sérgio de Seixas

A periferia abraça, circunscreve, cerca, ameaça e deixa apreensiva a cidade grande. É um amontoado de gente, gente sobre gente disputando espaço. Cresce desordenadamente, sobe morros, avança sobre calçadas, toma de assalto áreas comuns; constrói enquanto desconstrói. O homem da periferia não entende o porquê de tanto aperto, nem o preço salgado da terra, nem tampouco porque há tanto espaço livre, tão pouca gente no campo e tanta gente na cidade se espremendo em edificações que dariam inveja a Gaudí.

A cidade grande precisa dos braços baratos que a periferia possui em profusão. Mas a cidade grande também vomita homens, regurgita os desvalidos na periferia quando assim lhe convém, quando não os quer mais poluindo a paisagem, quando os espaços que ocupam nos guetos vão se transformar em viadutos.

O homem da periferia cansa mais indo ao trabalho do que trabalhando. Dorme no ônibus, cochila no metrô. Transportado feito gado, premido, espremido, quando não apanha para entrar no trem. As crianças da periferia não conhecem seus pais, só vultos que chegam a noite em casa depois de uma extenuante jornada laboral. A casa já não é casa, é dormitório. Diálogo com os filhos? Como, se o horário urge o descansar?

O homem da periferia vive das sobras que caem da mesa da metrópole: piores empregos, pior renda, piores serviços, piores políticos. Quando algum político vai à periferia, leva junto a escolta. Mas na qualidade de candidatos, à cata de votos, beijam e abraçam. A periferia casa-se com os projetos dos aspirantes a cargos eletivos, mas é divorciada deles tão logo os vencedores do pleito assumam os mandatos. Toda obra inaugurada na periferia precisa de multidão, massa de manobra para fazer número, dar show e sair na televisão. Novo hospital inaugurado: solenidade, fanfarra e um ou outro discurso inflamado. No dia a dia, porém, cadê o médico? Onde o clínico, o pediatra e o ortopedista?

O homem periférico planta trabalho e colhe dívidas, pois o ganho que obtém não lhe sustenta, e o desespero o leva ao agiota, para que uma dívida pague outra, pois é mais forte a máxima de que quem não deve não tem.

O homem da periferia vê TV e não se vê; e não se vendo, sonha em possuir o que não pertence a seu mundo. Ele seria mais feliz se não visse TV, pois não veria tanta coisa que não tem condições de possuir desfilando na tela diante da qual se assenta, se deita, se ajoelha. Alguns rompem o paradigma do não possuir e vão buscar o direito à posse, a ferro e fogo, do bem, do objeto, do talismã que lhes garantirá a aceitação alheia, tal como o cavalo que é apreciado pela beleza da sela que trás sobre os lombos. Vão lotar as prisões – presos por furtar pares de tênis ou de traficar para, com o ganho assim obtido, vestir roupas de marca.

A periferia da TV é poética, mas a vida na periferia real é prosa. No folhetim Global o homem de periferia se resigna, é feliz, contenta-se com o pouco que tem e sabe ficar em seu lugar. Ou, talvez, o homem que parte de baixo e atinge o topo, o self made man. Concordo que o homem periférico em carne e osso não se entrega, vai à luta e faz o que pode e o que não pode para sobreviver. A periferia não tem duas caras e não se sabe quem ali depositou a fábula cujo enredo entoa loas à convivência harmoniosa entre seus moradores. A vida no arrabalde é cobra comendo cobra, luta encarniçada por sobrevivência, por espaço, por emprego, por dignidade. A vida é dura na periferia, e pode ser tudo, menos obra de idílio. Só é exótico na periferia o que é culturalmente aproveitável. No ex ótico, contudo, é que mora o perigo: o que se come, como se dorme, como se sobrevive sem dinheiro, não se sabe.

A cultura sai da periferia, desce o morro e transborda no asfalto. Contudo o asfalto não devolve o que tomou emprestado. Eis que as vozes do morro ecoam pedindo atenção aos ouvidos: “eu sou o samba”, “eu sou o funk”, “eu sou o rap”, "eu existo". Quem ouvirá? Quem socorrerá? Quem se compadecerá?

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