O ROTEIRO DE GOLBERY
Por Mino Carta
Parece-me ouvir a gargalhada borbulhante do general Golbery do Couto e Silva enquanto o Supremo Tribunal Federal nega a revisão da Lei da Anistia pedida pela OAB. Golbery é personagem a merecer estudos profundos na qualidade, em primeiro lugar, de imbatível conhecedor da alma dos privilegiados do Brasil. Sem dar-se conta disso, eles se portam conforme o figurino traçado por quem já foi tido como o Merlin do Planalto.
Não cabe, obviamente, enxergar em Castello Branco ou em Ernesto Geisel reencarnações do rei Artur. Não passaram de títeres nas mãos do seu chefe da Casa Civil. João Figueiredo lá pelas tantas, quando explodiram as bombas do Riocentro, tentou livrar-se do titereiro e conseguiu. Nem por isso escapou ao roteiro preestabelecido por Golbery. Com a inestimável contribuição de um professor gaúcho, Leitão de Abreu, que falava alemão mas não conhecia a alma dos privilegiados.
Protagonista brasileiro da guerra fria, atento ao descompasso entre as sístoles e diástoles da política nativa, Golbery criou a ideologia do golpe de 1964 e, a partir de dez anos depois, ditou as regras da distensão que virou abertura. Fatais a derrota das Diretas Já, a enésima consagração da conciliação das elites na Aliança Democrática e a eleição indireta de janeiro de 1985. Disputada por quem Golbery previamente escolhera, Tancredo Neves e Paulo Maluf.
Chamaram o que se seguiu de redemocratização. Da mesma forma, teimaram em batizar o golpe de revolução. Palavras sem significado, cultivadas por uma elite responsável pelo atraso do Brasil, a despeito das extraordinárias vantagens que a natureza conferiu ao País. Hoje, Golbery se riria com o aval que o Supremo dá à Lei da Anistia por ele excogitada e finalmente imposta pela ditadura.
O voto do STF agrada aos candidatos Dilma, Serra e Marina. Não há um, um somente, que se queixe. E não se exclua que os ministros do Supremo tenham votado pela manutenção – belas e inesquecíveis exceções Carlos Ayres Brito e Ricardo Lewandowski – na certeza de contribuir para a paz geral da nação em um ano eleitoral. O que move os senhores da corte, da política, da mídia? O inesgotável medo do retrocesso ou a inesgotável vocação conciliatória?
Busca-se a acomodação em proveito do status quo. Para tanto, qualquer marola é incômoda. Este pessoal deveria é ter medo de algo temido por Golbery: “Se as coisas continuarem como estão – dizia ele –, ainda acabaremos pendurados num poste, menos eu, que morro logo”. Pergunto-me se, no caso, era sincero. Pois a aposta dos destinatários da ameaça se faz até hoje na resignação do povo.
Alguns pronunciamentos da votação do STF soaram com clangor, elaborados a indicar estudo exaustivo, e demorados como os discursos de Fidel Castro. Propõe-se, a bem da sacrossanta verdade, reescrever a história do Brasil, sem entender que nada se constrói a caminho da contemporaneidade do mundo sobre alicerces podres, ao contrário do que fizeram outros países, em épocas diversas e até bem recentes. Temos de concluir, entretanto, que mais uma vez a história assume a versão dos vencedores. A ditadura, portanto, cujos efeitos perduram.
Impressionou-me especialmente o voto do ministro Eros Grau. Há quem me diga que ele se pronuncia, por exemplo, contra a extradição de Cesare Battisti porque, embora vítima de certas confusões em relação à história italiana, sente-se atingido nas entranhas pela perseguição por ele mesmo sofrida nos tempos da ditadura. O ministro agora sustenta que a anistia foi ampla, geral e irrestrita, e decidida em sintonia entre os torturadores e suas vítimas.
Grau chega ao desplante de citar Raymundo Faoro, um dos maiores pensadores do Brasil de sempre. Recordo a batalha travada por Faoro, então presidente da OAB, e posteriormente nas páginas da IstoÉ, que eu dirigia, contra uma lei destinada a envergonhar qualquer país aspirante à democracia. Hoje Raymundo, que esbanjava um ferino senso de humor, também cairia em uma gargalhada. Acre, entretanto. Como ensinou Spinoza, não tinha medo e tampouco esperança.
Não cabe, obviamente, enxergar em Castello Branco ou em Ernesto Geisel reencarnações do rei Artur. Não passaram de títeres nas mãos do seu chefe da Casa Civil. João Figueiredo lá pelas tantas, quando explodiram as bombas do Riocentro, tentou livrar-se do titereiro e conseguiu. Nem por isso escapou ao roteiro preestabelecido por Golbery. Com a inestimável contribuição de um professor gaúcho, Leitão de Abreu, que falava alemão mas não conhecia a alma dos privilegiados.
Protagonista brasileiro da guerra fria, atento ao descompasso entre as sístoles e diástoles da política nativa, Golbery criou a ideologia do golpe de 1964 e, a partir de dez anos depois, ditou as regras da distensão que virou abertura. Fatais a derrota das Diretas Já, a enésima consagração da conciliação das elites na Aliança Democrática e a eleição indireta de janeiro de 1985. Disputada por quem Golbery previamente escolhera, Tancredo Neves e Paulo Maluf.
Chamaram o que se seguiu de redemocratização. Da mesma forma, teimaram em batizar o golpe de revolução. Palavras sem significado, cultivadas por uma elite responsável pelo atraso do Brasil, a despeito das extraordinárias vantagens que a natureza conferiu ao País. Hoje, Golbery se riria com o aval que o Supremo dá à Lei da Anistia por ele excogitada e finalmente imposta pela ditadura.
O voto do STF agrada aos candidatos Dilma, Serra e Marina. Não há um, um somente, que se queixe. E não se exclua que os ministros do Supremo tenham votado pela manutenção – belas e inesquecíveis exceções Carlos Ayres Brito e Ricardo Lewandowski – na certeza de contribuir para a paz geral da nação em um ano eleitoral. O que move os senhores da corte, da política, da mídia? O inesgotável medo do retrocesso ou a inesgotável vocação conciliatória?
Busca-se a acomodação em proveito do status quo. Para tanto, qualquer marola é incômoda. Este pessoal deveria é ter medo de algo temido por Golbery: “Se as coisas continuarem como estão – dizia ele –, ainda acabaremos pendurados num poste, menos eu, que morro logo”. Pergunto-me se, no caso, era sincero. Pois a aposta dos destinatários da ameaça se faz até hoje na resignação do povo.
Alguns pronunciamentos da votação do STF soaram com clangor, elaborados a indicar estudo exaustivo, e demorados como os discursos de Fidel Castro. Propõe-se, a bem da sacrossanta verdade, reescrever a história do Brasil, sem entender que nada se constrói a caminho da contemporaneidade do mundo sobre alicerces podres, ao contrário do que fizeram outros países, em épocas diversas e até bem recentes. Temos de concluir, entretanto, que mais uma vez a história assume a versão dos vencedores. A ditadura, portanto, cujos efeitos perduram.
Impressionou-me especialmente o voto do ministro Eros Grau. Há quem me diga que ele se pronuncia, por exemplo, contra a extradição de Cesare Battisti porque, embora vítima de certas confusões em relação à história italiana, sente-se atingido nas entranhas pela perseguição por ele mesmo sofrida nos tempos da ditadura. O ministro agora sustenta que a anistia foi ampla, geral e irrestrita, e decidida em sintonia entre os torturadores e suas vítimas.
Grau chega ao desplante de citar Raymundo Faoro, um dos maiores pensadores do Brasil de sempre. Recordo a batalha travada por Faoro, então presidente da OAB, e posteriormente nas páginas da IstoÉ, que eu dirigia, contra uma lei destinada a envergonhar qualquer país aspirante à democracia. Hoje Raymundo, que esbanjava um ferino senso de humor, também cairia em uma gargalhada. Acre, entretanto. Como ensinou Spinoza, não tinha medo e tampouco esperança.
Fonte: revista Carta Capital - 30 de abril de 2010.
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