AVESSO DO AVESSO
Reportagem de João Paulo
Publicado no jornal Estado de Minas - 11 de julho e 2009
O repórter Lucas Figueiredo parece ter atração por personagens desprezíveis. Como em jornalismo nada pode ser desprezado, ele vem contando a história recente do país com livros-reportagens que ajudam a decifrar alguns mistérios da República que, para o bem do Brasil, seria melhor não tivessem ocorrido. Como se tornaram realidade, cabe ao bom jornalismo entender sua trama, identificar responsáveis e ajudar a jogar luz sobre as trevas. Foi assim com o esquema de Collor-PC Farias e com a intrincada rede em torno do mensalão, com seu anti-herói mais destacado, Marcos Valério, dissecados nos livros Morcegos negros e O operador.
Publicado no jornal Estado de Minas - 11 de julho e 2009
O repórter Lucas Figueiredo parece ter atração por personagens desprezíveis. Como em jornalismo nada pode ser desprezado, ele vem contando a história recente do país com livros-reportagens que ajudam a decifrar alguns mistérios da República que, para o bem do Brasil, seria melhor não tivessem ocorrido. Como se tornaram realidade, cabe ao bom jornalismo entender sua trama, identificar responsáveis e ajudar a jogar luz sobre as trevas. Foi assim com o esquema de Collor-PC Farias e com a intrincada rede em torno do mensalão, com seu anti-herói mais destacado, Marcos Valério, dissecados nos livros Morcegos negros e O operador.
O mais recente mergulho do repórter na história é o volume Olho por olho – Os livros secretos da ditadura (Editora Record), depois que o tema foi objeto de série de reportagens para o Estado de Minas, dando ao autor o cobiçado Prêmio Esso de Reportagem em 2007. Mais uma vez, o foco recai sobre o lado escuro da sociedade, desta vez a ditadura militar (1964-1985), especialmente sua manifestação mais cruel e desprezível: a tortura, perseguição e morte de opositores do regime. O trabalho nasceu da descoberta acidental de um livro produzido pelo Exército para se contrapor às revelações do projeto histórico Brasil: nunca mais, a mais estruturada peça de denúncia contra o regime de exceção.
Na verdade, nada é acidental no jornalismo. O próprio repórter conta que tomou conhecimento do Livro negro do terrorismo no Brasil durante visita a uma fonte ligada aos militares. Em dois volumes encadernados, datilografados em linguagem de caserna, com termos pedantes e cuspindo ideologia reacionária a cada parágrafo, estava disposto um trabalho em equipe feito para atacar os resultados do Brasil: nunca mais. Trabalho coordenado por dom Paulo Evaristo Arns e o pastor James Wright, o BNM levou à consciência internacional a fratura que atacou o Estado de Direito, a democracia e os direitos humanos no Brasil. A história dos dois livros está na base de Olho por olho.
Lucas Figueiredo abre seu thriller jornalístico com a recuperação da memória do projeto Brasil: nunca mais. Trabalhando com fontes primárias e muita pesquisa, segue de perto o roteiro que o jornalista americano Lawrence Weschler estabeleceu no já clássico Um milagre no universo – O acerto de contas com os torturadores, publicado em 1990. O que fazer com os torturadores? Esta era a pergunta que tirava o sono de pessoas de vários países da América Latina na década que marcou a transição das ditaduras para regimes mais brandos. Como adentrar na normalidade democrática sem deixar impunes os criminosos que deram o tom de violência, que calou com dor e morte a oposição, era um dilema ético. O esquecimento não era a saída. Pelo contrário, frente à manutenção de aparatos, sobretudo ligados aos militares, a tarefa era lembrar.
A primeira parte de Olho por olho é a recuperação do trabalho competente e consequente realizado pelo grupo liderado pelos religiosos. Eles não tinham apenas a moral como garantia, mas o bem articulado trabalho de equipe, que permitiu que centenas de processos fossem retirados do Superior Tribunal Militar, xerocados, estudados e analisados, com dados cruzados com eficiência. Para cumprir a tarefa foram recrutados colaboradores que não dominavam todo o processo, montadas várias estruturas que eram desfeitas ao primeiro sinal de perigo, buscados recursos em financiadores externos ligados aos direitos humanos. Com a incrível massa de dados – os próprios processos, guardados com zelo pelos militares, traziam descrições dos horrores dos porões da ditadura –,foram elaborados dois documentos.
O primeiro, com a integridade dos dados, foi chamado de Projeto A; o outro, uma síntese elaborada com colaboração do jornalista Ricardo Kotscho e do religioso dominicano Frei Betto. Este último está na origem do livro Brasil: nunca mais, editado pela Vozes (depois de recusado por várias editoras, temerosas da reação dos militares, o livro recebeu parecer entusiasmado de Leonardo Boff, um dos responsáveis pelo selo católico), surpreendendo o Brasil e o mundo. Foram seis anos de trabalho sigiloso, com números que dão a dimensão da tarefa: 17 mil investigados, mais de 3,5 mil presos, 1,8 mil torturados e relatos de mais de 285 modalidades de tortura. Como define Lucas Figueiredo, uma “contabilidade do inferno”.
Nem mesmo o lançamento escapou das atribulações da história: BNM, pronto para chegar às livrarias com a posse de Tancredo Neves, em março de 1985, amargou ponderada quarentena até junho, à espera da solução do imbroglio relativo à posse de Sarney, depois da morte do presidente eleito. O livro vendeu muito e foi complementado pela estratégia de denúncia dos nomes de 444 torturadores que agiram durante a ditadura militar. Quem não gostou, nem um pouco, foi o Exército, particularmente o general Leônidas Pires Gonçalves, que acabara de entrar para a história como fiador da posse de Sarney. É aí que começam as revelações de Olho por olho.
Ao contrário
O general, indignado com a repercussão de Brasil: nunca mais, decide atacar com a mesma moeda: encomenda do Centro de Informação do Exército (CIE) um livro que respondesse, ponto a ponto, as denúncias do Brasil: nunca mais. Não se tratava de contestar informações, que faziam parte de inquéritos da própria justiça militar, mas o que estava por trás. Para o Exército, tratava-se de um conflito entre grupos ideológicos antípodas e, com o livro, seria dada sua versão da história. O projeto do CIE ganhou o nome de Orvil, livro ao contrário. Título tão estapafúrdio como o resultado do trabalho, conforme demonstram vários trechos transcritos no volume.
Um dos resultados do Orvil, por exemplo, foi ampliar o bestialógico da atuação dos organismos de segurança. Pelo trabalho executado pelo Exército, novos nomes se somaram aos identificados pelo BNM. Além disso, mostrou-se que, mesmo com a redemocratização, era vigente na caserna o sentimento de revanchismo da tropa e de seus dirigentes. Eles não engoliram as revelações de tortura e responderam com vômito ideológico da pior qualidade política e jurídica: processos malconduzidos, justificativas ideológicas e interpretações personalistas. Pior: quiseram fazer valer a ideia de que se tratava de uma guerra de duas verdades antagônicas.
O livro ajuda a delimitar a distinção entre o que é guerra e o que é política de Estado terrorista. No caso da ditadura militar brasileira, a ação de resistência da oposição, inclusive a luta armada, se confrontava com o estado de terror. A tortura, a ausência de liberdade e o interregno da Justiça não eram exceção, mas a regra que tocava o cotidiano das relações sociais, econômicas e políticas. O nome do livro, Olho por olho, pode indicar que se trata de compreensão dos episódios a partir da metáfora da pena de Talião. Tudo, no entanto, deixa claro que essa era a intepretação do Exército, inclusive quando se trata da questão da anistia, da qual se julga igualmente beneficiário.
Um Estado ligado intestinamente ao mal, que se fundamenta em ações de violência desigual contra a população como um todo, não pode ser tomado como ator de um jogo entre posições divergentes. Os argumentos ideológicos utilizados pelo CIE em seu tosco Orvil são tão mais iníquos quanto mais buscam justificação na história, como se tratasse de vingança ou de acerto de contas. Os dois lados não eram comparáveis, não dispunham dos mesmos meios, não atuavam no mesmo cenário. O Exército, ao buscar reescrever a história, não fez um revisionismo, mas uma operação ideológica, no sentido filosófico do termo: uma mentira que busca estatuto de verdade.
Olho por olho é ainda empolgante livro de história recente do Brasil. Nele estão personagens que orgulham seu tempo, como dom Paulo Evaristo Arns, Jaime Wright, dom Helder Câmara; outros que se oferecem como algozes voluntários do mal, como o delegado Fleury e seu séquito de torturadores; guerrilheiros como Marighella e José Genoíno; presidentes como Emílio Garratazu Médici; religiosos como frei Tito e frei Fernando; artistas como Antonio Callado e Chico Buarque; militares assumidamente reacionários como Brilhante Ustra e Agnaldo Del Nero ( a “mãe” do Orvil). O livro traz, em fotos e pequenas biografias, os homens e mulheres mortos por tortura, como se ainda fosse importante lembrar, mesmo tanto tempo depois.
Lucas Figueiredo separa bem os fios, estabelece por dentro a estratégia dos dois livros, indica sua presença numa certa visão política ainda vigente de luta de posições, identifica personagens dos dois lados da história e até um que parecia perdido entre eles: o caseiro de nome Joaquim, morto pelo Exército, mas não incluído na lista das baixas da esquerda. A reportagem do autor de Olho por olho parece ser ligada a ideias gerais e grandes fatos, mas brilha sobretudo quando as pessoas aparecem por trás da roda da história. Que os livros secretos do subtítulo tenham deixado de sê-los é outro mérito do repórter. E talvez a função primordial do jornalismo: quanto menos secreto, melhor.
OLHO PO OLHO - OS LIVROS SECRETOS DA DITADURA
De Lucas Figueiredo
Editora Record, 208 páginas, R$38
Na verdade, nada é acidental no jornalismo. O próprio repórter conta que tomou conhecimento do Livro negro do terrorismo no Brasil durante visita a uma fonte ligada aos militares. Em dois volumes encadernados, datilografados em linguagem de caserna, com termos pedantes e cuspindo ideologia reacionária a cada parágrafo, estava disposto um trabalho em equipe feito para atacar os resultados do Brasil: nunca mais. Trabalho coordenado por dom Paulo Evaristo Arns e o pastor James Wright, o BNM levou à consciência internacional a fratura que atacou o Estado de Direito, a democracia e os direitos humanos no Brasil. A história dos dois livros está na base de Olho por olho.
Lucas Figueiredo abre seu thriller jornalístico com a recuperação da memória do projeto Brasil: nunca mais. Trabalhando com fontes primárias e muita pesquisa, segue de perto o roteiro que o jornalista americano Lawrence Weschler estabeleceu no já clássico Um milagre no universo – O acerto de contas com os torturadores, publicado em 1990. O que fazer com os torturadores? Esta era a pergunta que tirava o sono de pessoas de vários países da América Latina na década que marcou a transição das ditaduras para regimes mais brandos. Como adentrar na normalidade democrática sem deixar impunes os criminosos que deram o tom de violência, que calou com dor e morte a oposição, era um dilema ético. O esquecimento não era a saída. Pelo contrário, frente à manutenção de aparatos, sobretudo ligados aos militares, a tarefa era lembrar.
A primeira parte de Olho por olho é a recuperação do trabalho competente e consequente realizado pelo grupo liderado pelos religiosos. Eles não tinham apenas a moral como garantia, mas o bem articulado trabalho de equipe, que permitiu que centenas de processos fossem retirados do Superior Tribunal Militar, xerocados, estudados e analisados, com dados cruzados com eficiência. Para cumprir a tarefa foram recrutados colaboradores que não dominavam todo o processo, montadas várias estruturas que eram desfeitas ao primeiro sinal de perigo, buscados recursos em financiadores externos ligados aos direitos humanos. Com a incrível massa de dados – os próprios processos, guardados com zelo pelos militares, traziam descrições dos horrores dos porões da ditadura –,foram elaborados dois documentos.
O primeiro, com a integridade dos dados, foi chamado de Projeto A; o outro, uma síntese elaborada com colaboração do jornalista Ricardo Kotscho e do religioso dominicano Frei Betto. Este último está na origem do livro Brasil: nunca mais, editado pela Vozes (depois de recusado por várias editoras, temerosas da reação dos militares, o livro recebeu parecer entusiasmado de Leonardo Boff, um dos responsáveis pelo selo católico), surpreendendo o Brasil e o mundo. Foram seis anos de trabalho sigiloso, com números que dão a dimensão da tarefa: 17 mil investigados, mais de 3,5 mil presos, 1,8 mil torturados e relatos de mais de 285 modalidades de tortura. Como define Lucas Figueiredo, uma “contabilidade do inferno”.
Nem mesmo o lançamento escapou das atribulações da história: BNM, pronto para chegar às livrarias com a posse de Tancredo Neves, em março de 1985, amargou ponderada quarentena até junho, à espera da solução do imbroglio relativo à posse de Sarney, depois da morte do presidente eleito. O livro vendeu muito e foi complementado pela estratégia de denúncia dos nomes de 444 torturadores que agiram durante a ditadura militar. Quem não gostou, nem um pouco, foi o Exército, particularmente o general Leônidas Pires Gonçalves, que acabara de entrar para a história como fiador da posse de Sarney. É aí que começam as revelações de Olho por olho.
Ao contrário
O general, indignado com a repercussão de Brasil: nunca mais, decide atacar com a mesma moeda: encomenda do Centro de Informação do Exército (CIE) um livro que respondesse, ponto a ponto, as denúncias do Brasil: nunca mais. Não se tratava de contestar informações, que faziam parte de inquéritos da própria justiça militar, mas o que estava por trás. Para o Exército, tratava-se de um conflito entre grupos ideológicos antípodas e, com o livro, seria dada sua versão da história. O projeto do CIE ganhou o nome de Orvil, livro ao contrário. Título tão estapafúrdio como o resultado do trabalho, conforme demonstram vários trechos transcritos no volume.
Um dos resultados do Orvil, por exemplo, foi ampliar o bestialógico da atuação dos organismos de segurança. Pelo trabalho executado pelo Exército, novos nomes se somaram aos identificados pelo BNM. Além disso, mostrou-se que, mesmo com a redemocratização, era vigente na caserna o sentimento de revanchismo da tropa e de seus dirigentes. Eles não engoliram as revelações de tortura e responderam com vômito ideológico da pior qualidade política e jurídica: processos malconduzidos, justificativas ideológicas e interpretações personalistas. Pior: quiseram fazer valer a ideia de que se tratava de uma guerra de duas verdades antagônicas.
O livro ajuda a delimitar a distinção entre o que é guerra e o que é política de Estado terrorista. No caso da ditadura militar brasileira, a ação de resistência da oposição, inclusive a luta armada, se confrontava com o estado de terror. A tortura, a ausência de liberdade e o interregno da Justiça não eram exceção, mas a regra que tocava o cotidiano das relações sociais, econômicas e políticas. O nome do livro, Olho por olho, pode indicar que se trata de compreensão dos episódios a partir da metáfora da pena de Talião. Tudo, no entanto, deixa claro que essa era a intepretação do Exército, inclusive quando se trata da questão da anistia, da qual se julga igualmente beneficiário.
Um Estado ligado intestinamente ao mal, que se fundamenta em ações de violência desigual contra a população como um todo, não pode ser tomado como ator de um jogo entre posições divergentes. Os argumentos ideológicos utilizados pelo CIE em seu tosco Orvil são tão mais iníquos quanto mais buscam justificação na história, como se tratasse de vingança ou de acerto de contas. Os dois lados não eram comparáveis, não dispunham dos mesmos meios, não atuavam no mesmo cenário. O Exército, ao buscar reescrever a história, não fez um revisionismo, mas uma operação ideológica, no sentido filosófico do termo: uma mentira que busca estatuto de verdade.
Olho por olho é ainda empolgante livro de história recente do Brasil. Nele estão personagens que orgulham seu tempo, como dom Paulo Evaristo Arns, Jaime Wright, dom Helder Câmara; outros que se oferecem como algozes voluntários do mal, como o delegado Fleury e seu séquito de torturadores; guerrilheiros como Marighella e José Genoíno; presidentes como Emílio Garratazu Médici; religiosos como frei Tito e frei Fernando; artistas como Antonio Callado e Chico Buarque; militares assumidamente reacionários como Brilhante Ustra e Agnaldo Del Nero ( a “mãe” do Orvil). O livro traz, em fotos e pequenas biografias, os homens e mulheres mortos por tortura, como se ainda fosse importante lembrar, mesmo tanto tempo depois.
Lucas Figueiredo separa bem os fios, estabelece por dentro a estratégia dos dois livros, indica sua presença numa certa visão política ainda vigente de luta de posições, identifica personagens dos dois lados da história e até um que parecia perdido entre eles: o caseiro de nome Joaquim, morto pelo Exército, mas não incluído na lista das baixas da esquerda. A reportagem do autor de Olho por olho parece ser ligada a ideias gerais e grandes fatos, mas brilha sobretudo quando as pessoas aparecem por trás da roda da história. Que os livros secretos do subtítulo tenham deixado de sê-los é outro mérito do repórter. E talvez a função primordial do jornalismo: quanto menos secreto, melhor.
OLHO PO OLHO - OS LIVROS SECRETOS DA DITADURA
De Lucas Figueiredo
Editora Record, 208 páginas, R$38
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