BONDES - O TRANSPORTE DO FUTURO

Um bonde subindo a Rua da Bahia

Reportagem de Pedro Rocha Franco

Imagine sair da Rua Grão Mogol, no Bairro Carmo-Sion, e percorrer 14 quilômetros em transporte público, em via exclusiva, até as margens da Lagoa da Pampulha, com apenas uma troca de veículo na Praça 7, no Centro. Ou cruzar a cidade de Leste a Oeste, passando pelos pontos mais importantes, sem precisar de dar intermináveis voltas pelos bairros. Os percursos são concretos e não saíram das pranchetas de urbanistas preocupados em projetar a Belo Horizonte do futuro ou o transporte de massa que a capital sonha em ter na Copa do Mundo de 2014. Muito pelo contrário. Essas eram apenas duas das muitas possibilidades que tinham os belo-horizontinos há 60 anos, com um modelo de transporte que somava 73 quilômetros de linhas, mais que o dobro dos atuais 28 quilômetros do metrô.

Ramais dos bondes em Belo Horizonte no auge do sistema

No auge de sua eficiência, o sistema de bondes de Belo Horizonte chegou a transportar 73 milhões de passageiros por ano num dos 75 veículos – um sexto do total de pessoas levadas pelos 2.854 ônibus municipais no ano passado ou pouco mais da metade das passagens vendidas para o metrô –, com tamanha articulação que possibilitava a locomoção pelos quatro cantos da cidade. Em pleno terceiro milênio, ver um mapa semelhante ao do percurso dos bondes na década de 1950 – seja para o metrô, seja para os corredores exclusivos de ônibus, seja para o veículo leve sobre trilhos, o parente mais próximo do antigo sistema – só é possível no papel, em um dos projetos do poder público que ainda não conseguiram romper a fase de promessa.

Desde a implantação dos primeiros trilhos na nova capital de Minas, no começo do século passado, o sistema de bondes teve duas fases distintas: nas duas primeiras décadas era visto, muitas vezes, como transporte para grã-fino e a partir da proliferação de linhas, tendo como destinação atender aos trabalhadores e à parcela da população que não dispunha de automóveis – objeto raro e de luxo no Brasil até meados da segunda metade do século 20.

Bonde trafegando na região da Gameleira nos anos 50

UM TOSTÃO Apenas 10 anos depois da primeira viagem, em 1912, a extensão da malha de bondes ultrapassaria o atual traçado do metrô, com 30 quilômetros de trilhos ante os 28 quilômetros. E diferentemente do único sentido do ramal Eldorado-Vilarinho aos poucos eram costuradas linhas para possibilitar o deslocamento. Da Gameleira, Santo Antônio, Carmo, Serra, Cachoeirinha, Renascença, Carlos Prates... e até da Pampulha partiriam bondes tendo como parada obrigatória os abrigos da Praça Sete de Setembro. Dali, bastava o passageiro descer e escolher o próximo destino por apenas um tostão – valor da passagem, equivalente a 80 réis, moeda da época.

A Praça Sete nos tempos dos bondes

Os ramais podiam ter destinação específica, como o criado para ligar a Lagoinha à vila Santo André, atual Região Nordeste. Como da Pedreira Prado Lopes – primeiro aglomerado da capital – eram extraídas as pedras usadas nas construções de ruas e casas, era preciso garantir o transporte dos operários para o Centro e, na década de 1940, a Rua Pedro Lessa foi prolongada, o que obrigou a demolição de parte da imensa rocha, e dali e para ali seguiria a linha Santo André, com 1.350 metros de extensão.

Na mesma época, com a inauguração do conjunto arquitetônico da Pampulha, era possível cruzar toda a Avenida Antônio Carlos para chegar ao Iate Tênis Clube ou a um dos atrativos às margens da Lagoa da Pampulha. Com uma vara de pescar na mão, o garoto Zulu – apelido de José Eloy Pereira da Rocha –, então com seus 15 anos, pegava o bonde Renascença, na Rua Jacuí, até a Praça Sete e, de lá, descia, sem pagar na maioria das vezes, apanhava outro bonde. Desta vez, era o Pampulha. A brincadeira rendia o domingo até tarde. Depois de horas à beira da lagoa, na volta para casa, os passageiros ainda eram obrigados a conviver com o cheiro dos três ou quatro piaus na sacola do moleque. “Mas até passava rápido. Não tinha trânsito. Carro dava para apontar. A maioria era bicicleta e carroça”, recorda, aos 76 anos.

Bondes nos anos 30 circulando a Praça Sete

TRÓLEBUS - Dos anos 1940 até os 1970, o transporte elétrico teve um período de abandono em todo o mundo. Em BH, a partir de 1950, com a entrada em circulação dos trólebus e a ascensão dos ônibus, os bondes foram aposentados aos poucos. Até a parada definitiva do transporte em 1963. Obsoleto, o modal passou a ser deixado de lado, mas, segundo o historiador e jornalista norte-americano Allen Morrison, um dos principais pesquisadores dos bondes no mundo e responsável pela elaboração do mapa ao lado baseando-se em plantas do Arquivo Público de Belo Horizonte e trabalhos sobre o tema, "no fim da década de 1970, as cidades voltam a investir no modelo, bem mais moderno.

Atualmente, 136 cidades têm o sistema e outras 50 estão em construção. Mas a América Latina resiste, exceto Buenos Aires, que conta com duas linhas", explica o autor dos livros Os bondes no Brasil, Os bondes no Chile e Na América Latina de Automóvel e desde 1998 responsável por um site com mais de 1,5 mil páginas e 3,5 mil fotografias sobre o transporte sobre trilhos no mundo.


UM SISTEMA IDEAL PARA BH


Em 30 de junho de 1963, as seis linhas remanescentes de bondes em Belo Horizonte fazem sua última viagem e os trilhos são retirados das ruas. Simbolicamente, significava o ponto final do modal de transporte, considerado obsoleto. Em contrapartida, a chegada do progresso com a propagação dos automóveis era sinônimo de status, desde já e para sempre. Apesar das reclamações a respeito da lotação e de problemas corriqueiros, os belo-horizontinos mal sabiam que, quase cinco décadas depois, o sistema articulado e longe dos engarrafamentos monstruosos da metrópole de mais de 1,2 milhão de veículos poderia ser modelo para um novo sistema de transporte na capital.

Um dos motivos para a falência dos bondes e sua substituição foi a falta de investimento público, diz a pesquisadora e diretora do Arquivo Público de Belo Horizonte, Maria do Carmo Andrade Gomes. "BH já foi moderna. Existia uma política pública apropriada", afirma a autora do livro Omnibus: Uma história dos transportes coletivos em BH. Em 1947, os trilhos somavam 73 quilômetros e os veículos carregavam 73 milhões de passageiros/ano, mas, a data representa também o início da decadência do transporte, pouco a pouco substituído pelos ônibus, trólebus e o trem metropolitano.

Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, o sistema de bondes era o principal modal, mas os ônibus e os trólebus, a partir de 1953, tinham coparticipação no transporte público. Cada um atendia a determinada demanda. E, reafirmando o entendimento dos principais conhecedores de engenharia de tráfego e transportes, a pesquisadora considera o formato intermodal o ideal para desafogar o trânsito. "A alternativa é aliar todos os modelos", diz ao citar o exemplo de Paris: "Lá ainda tem bonde. E as mulheres chiquérrimas andam de metrô", afirma.


OS ANOS DE OURO

Bonde trafegando na Av. Antônio Carlos em 1958

1902 Em 7 de setembro, são inauguradas as primeiras linhas de bonde elétrico pela Companhia Ferro-Carril de Belo Horizonte, seguindo quatro trajetos: Quartel, Mercado, Rua Ceará e Rua Pernambuco.

1903 É inaugurado o primeiro abrigo de passageiros na Avenida Afonso Pena, esquina com Rua Ceará.

1907 Cinco anos depois da abertas as primeiras linhas, BH tem 24 quilômetros de trilhos, divididos em sete linhas. No mesmo ano, é inaugurado o abrigo na Praça 13 de Maio (atual Praça Diogo de Vasconcelos, na Savassi), que, a partir de 1908, receberia o bonde fechado, construído em peroba e canela e reservado a autoridades.

1912 O sistema tem 30 quilômetros de extensão para atender os 38.822 habitantes da capital. No ano, os 39 veículos transportariam mais de 5 milhões de passageiros.

1923 BH ganha a primeira linha de auto-ônibus, para suprir a carência do atendimento de bondes, que percorria poucos bairros.

1928 Por causa de uma forte seca, o número de bondes em operação é reduzido. Em contrapartida, a prefeitura implanta novas linhas de auto-ônibus, com tarifa de 300 réis. O serviço é extinto em dezembro com a temporada de chuvas e a normalização do fornecimento de energia.

1937 Inauguração de mais dois abrigos na Praça 7, ponto obrigatório para os bondes de todas as linhas. Com as novas paradas, é demolido o prédio da Agência de Bondes, no cruzamento da Avenida Afonso Pena com Rua da Bahia, e o “centro nervoso” passa a ser Afonso Pena esquina com Amazonas.

1942 Em plena Segunda Guerra Mundial, é proibida a circulação de veículos particulares, por causa da escassez de combustível.

1947 Inauguração do ramal da Pampulha. Na década de 1940, são construídos três novos ramais: Carmo, Pedro II e Cachoeirinha. O ano é considerado auge do fluxo de pessoas, com 73 milhões de passageiros, 75 bondes e 73 quilômetros de trilhos.

1949 Por causa do sucateamento dos bondes, a prefeitura investe pouco a pouco nos ônibus.

1950 Os bondes param de circular na Avenida Afonso Pena e são retirados os pontos da Praça 7. Tem início a circulação de uma linha própria para bagagem.

1951 O prefeito Américo Renné Giannetti assume o cargo defendendo a troca do sistema de bondes pelos trólebus.

1957 Mais da metade da frota está em oficinas esperando a compra de peças para reparos. Apenas 25 bondes operam.

1963 Fim da linha para os bondes em BH. As últimas linhas (Cachoeirinha, Gameleira, Bom Jesus, Horto, Padre Eustáquio e Cidade Ozanam) são desativadas.

2005 A prefeitura apresenta projeto para uma linha turística de bonde, ligando a Praça Raul Soares ao Museu Histórico Abílio Barreto, mas o projeto não sai do papel.


CAOS COM CARROS É INEVITÁVEL


Caso não seja tomada medida para diminuir o número de automóveis em circulação em Belo Horizonte e outras metrópoles brasileiras, como Brasília e São Paulo, o alardeado colapso será inevitável. A manutenção no ritmo de crescimento da frota de carros e de motocicletas pelos próximos 10 anos resultará no dobro e quadruplo de cada um dos tipos de veículo, respectivamente.

O mestre em engenharia de transportes e assessor técnico da Agência de Desenvolvimento Metropolitano de Minas Gerais, Paulo Rogério Monteiro, aponta como solução “óbvia” para evitar o caos do trânsito de BH e das cidades vizinhas a elaboração de planejamento para crescimento ordenado da região. “A mobilidade tem que ser pensada como uma grande e complexa engrenagem em que uma pequena peça pode emperrar as demais”, diz em referência à necessidade de se ter um sistema intermodal.

“O metrô, por exemplo, tem função de atender aos eixos com maior demanda, mas não consegue alcançar os cantos dos bairros. Esse é dever dos ônibus e em áreas planas pode ser feito o uso de bicicletas, por meio de ciclovias”, explica. E adverte que, mesmo se o poder público der continuidade aos megainvestimentos em infraestrutura e ampliação de vias, o espaço físico não cresce na mesma proporção.


O FUTURO SOBRE OS TRILHOS


O exemplo da construção de sistemas intermodais em cidades mundo afora mostra que até nas metrópoles mais contemporâneas os bondes podem ter uso mais eficiente que o simples aparato turístico, como no Rio de Janeiro ou pretendido na gestão do prefeito Fernando Pimentel (PT), em BH, há cinco anos. Em Paris, Dallas, Helsink e outras mais de 100 cidades, o transporte elétrico sobre trilhos é usado como alternativa ao metrô e, principalmente aos ônibus, como planeja fazer nos principais corredores da capital o prefeito Marcio Lacerda (PSB) implantando o Veículo Leves sobre Trilhos (VLT).

VLT de Dublin, Irlanda

O modelo usa o mesmo sistema dos charmosos bondes nos primeiros anos do século passado. “O Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) é simplesmente um nome moderno para um formato de bonde mais complexo. Hoje os bondes são usualmente articulados, correm sobre trilhos e tem o piso rebaixado, próximo ao chão”, explica o pesquisador norte-americano Allen Morrison, especialista no estudo de bondes. “Quase todas as grandes metrópoles do mundo possuem sistemas de bondes, exceto na América Latina. O sucesso do transporte é extraordinário. Cidades como Dallas, Denver, Saint Louis e Los Angeles, todas nos Estados Unidos, não conseguiriam construir novas linhas com eficiência semelhante”.

Autor de três livros sobre o tema, ele estudou os meios de locomoção em grandes cidades europeias, asiáticas, norte-americanas e, principalmente, sul-americanas. A implantação do sistema sobre trilhos é apontado como necessário para que as pessoas troquem o egoísmo dos automóveis pelo transporte público, mas explica as condições para que isso ocorra. “Inicialmente, os transportes sobre trilhos são mais caros para serem implantados. Mas, ao longo do tempo, eles são econômicos, além de não poluírem. Há também o fator psicológico. O transporte elétrico sobre trilhos transmite sentimento de estabilidade e proteção. O público prefere o trajeto mais calmo. Em todo o mundo, tem sido demonstrado que os passageiros abandonam seus carros para usar trens, metrôs e bondes. Mas eles não fazem a troca para andar de ônibus – sempre mais lentos e uma forma menos glamourosa de transporte público.”


Fonte: jornal Estado de Minas - 21/02/2010
Fotos: Acervo de Allen Morrison

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