ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL - UM PRESENTE DOS SENHORES: 1ª Parte

Os negros carregaram a sociedade branca nas costas


Por Cléber Sérgio de Seixas

O relato bíblico do Gênesis narra um episódio no qual o patriarca Noé plantou uma vinha, embriagou-se de vinho, pôs-se nu dentro de sua tenda e foi surpreendido na sua vergonha pelo filho mais moço, Cam. O caçula fez saber o ocorrido a seus irmãos mais velhos. Diante da exposição promovida por Cam, Noé o amaldiçoou condenando os descendentes daquele a serem servos dos servos de seus irmãos.

Muitos exegetas fundamentalistas bíblicos enxergam aí a origem da raça negra e a explicação "divina" para a escravidão desta por outras ditas superiores, inferindo, assim, que os negros são membros de uma raça maldita cuja sina é servir aos descendentes dos filhos de Sem e Jafé, os outros filhos de Noé. Se levarmos em conta que o delito de Cam foi uma simples fofoca, concluiremos que a represália do Criador foi e tem sido desmesurada. Aqueles que se apropriam de tal narrativa bíblica, tentam justificar, assim, de forma simples, não científica e fundamentalista, a opressão, o racismo e a depreciação do ser humano por causa da cor de sua pele.

Crenças e interpretações bíblicas à parte, é oportuno abordamos a questão do racismo sob o prisma da História. Por séculos os negros foram relegados, rebaixados em sua humanidade e escravizados com base em toda sorte de preconceitos que lançavam âncoras em sórdidos interesses. Com o fim da antiguidade e o advento dos tempos medievais, a escravidão – que não era exclusividade dos negros na Roma antiga, por exemplo - parecia ter sido abolida. Foi então que o processo de acumulação capitalista fez com que os europeus transformassem o continente africano em um gigantesco campo de caça de escravos que, transportados feito animais em brigues imundos – como disse Castro Alves em seu célebre poema Navio Negreiro –, atravessavam o oceano e desembarcavam em portos nada amistosos para um destino ainda menos amistoso.

Nas novas terras d’além mar, sobretudo nas colônias do Novo Mundo, estouravam de trabalhar nas lavouras de cana, nas minas de ouro e nas plantações de café e algodão. Entre uma e outra jornada de trabalhos forçados, eram castigados impiedosamente, tendo os corpos marcados pela ira dos senhores de engenho e de seus capatazes – estigmas a lembrá-los de suas condições de subjugados. Muitos se insurgiram contra os senhores e tantos outros fugiram em busca de horizontes mais favoráveis. Destes horizontes libertários, Palmares é o exemplo mais marcante.

Foi aí que um senhor inglês chamado James Watt teve a brilhante idéia de criar uma máquina para retirar a água acumulada nas minas. O vapor como força motriz marcou o início de uma nova revolução, a Industrial, cujos desdobramentos econômicos tornariam o sistema capitalista incompatível com o escravismo (leia A Máquina a Vapor Libertou os Escravos). Paralelamente, aqui e ali, o movimento abolicionista ganhava fôlego, contudo, o fator preponderante para o fim da escravidão foi o econômico: homens livres e assalariados para a produção de mais-valia e para formação e ampliação dos mercados consumidores.

No Brasil, último país onde o hediondo sistema escravagista foi abolido, os negros libertos foram abandonados à própria sorte, sem que houvesse nenhuma compensação econômica ou legal para quase 350 anos de servidão involuntária. Como ovelhas soltas do aprisco, não sabiam o que fazer com a liberdade ou como usufruí-la. Muitos voltaram a trabalhar para os antigos senhores, outros formaram quilombos e outros tantos, talvez a maioria, foram habitar os guetos dos grandes centros urbanos, onde formaram favelas e aglomerados.

A liberdade dos negros brasileiros não passou de letra morta rabiscada pela pena da Princesa Isabel. No mais, permaneceram o racismo, o preconceito e a discriminação. A única evolução sócio-econômica que os negros brasileiros experimentaram desde que o primeiro africano aqui pisou, foi aquela no estilo gradativo freyreano, ou seja, evoluíram de senzalas a mocambos e destes para as favelas. Nessa ingrata senda foram espalhadas as sementes da fome, da marginalização e da violência.

Como cantou um certo roqueiro - hoje um reacionário de carteirinha - , a favela é a nova senzala. E quem é que vai pagar por isso? Eis a pergunta que não quer calar.

Respondo a pergunta acima na segunda parte deste artigo

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