Quando o humor não tem graça

Por Marcelo Carneiro da Cunha *

Não é de hoje que eu acho esquisito que um povo como o nosso, com um incrível senso de humor no varejo, crie humor de qualidade tão ruim quando a coisa é profissional. Parece que somos engraçadíssimos quando a situação não pede, e sem-gracíssimos quando somos pagos para fazer rir. Na nossa televisão, com a honrosa exceção de exceções como o TV Pirata, Casseta e Planeta e os bons especiais do Guel Arraes, imperou e impera a tristeza generalizada. Nosso humor sempre andou pelo pastelão, pela chanchada, pelo riso pesado em vez da leveza bem humorada que ajuda a vida a deslizar por aí. Na comparação com o acachapante humor inglês, com o brilhante humor americano (em grande parte produzido pela porção judaica da população de New York), a gente se sai muito, muito mal. Os argentinos mesmos, aqui ao lado, podem ser excelentes - videm o grupo Les Luthiers como demonstração do abismo entre nós e eles.

E eis que nesses tempos globalizados importamos uma forma de humor americana por excelência, o stand up, que faz um sucesso desenraizado em nossas bandas. Importamos a forma, esquecemos uma coisinha no caminho, e o resultado é esse que se manifesta ultimamente, nos ditos, feitos e acontecidos de gente como Danilo Gentili, Rafinha Bastos, Diogo Portugal e assemelhados, uns deles amplificados pelo espaço televisivo do CQC.

Stand up é a afirmação do indivíduo sobre todas as coisas, talvez por isso combine tão bem com a visão americana de mundo. Se ele é essa afirmação, então o indivíduo precisa entregar o que promete, porque sobre os ombros dele se apóia a humanidade. Haja crença, ousadia, convicção e gogó. Haja texto. E não temos.

Nada, caros leitores, nada mesmo, exceto uma eventual extração de vários sisos sem o benefício de uma anestesia, pode ser pior do que humor sem graça. Humor sem graça começa pela falta de inteligência e informação e desaba na falta de humanidade.

Fazer piada de judeus sendo levados a Auschwitz é um exemplo do que eu estou falando. Dizer que somente mulheres feias são estupradas, ou algo do tipo, também.

O humor costuma ser cáustico, prezados leitores. Brincar com nossos adversários, brincar com nossos amigos, apontar fraquezas nos outros, melhor ainda se for em si mesmo, é uma maneira de passear pelos aspectos mais dolorosos de nossa curta existência. Isso, é do jogo. Algumas das coisas mais divertidas que lemos ou vemos são razoavelmente cruéis. Várias delas raspam o mau gosto, ou mesmo flertam com ele.

Mas tudo isso pode ser feito, e muito bem, sem mergulhar na feiúra possível da vida, e essa é a grande lição que uns aprendem, outros nunca. O humor foi criado para podermos dizer o que não deve ser pensado, e sairmos chamuscados, mas vivos. O humor serve para dizermos o que nos levará ao fuzilamento, dito de outra forma. Mas o humor não foi feito para reduzir, magoar, e, especialmente, oprimir. Piadas étnicas podem ser uma forma suprema de justificar o racismo. Sexo é engraçadíssimo, e homens durante o sexo, mais ainda. Estupro não tem nada, mas nada mesmo, de engraçado, se ele é o que eu imagino que seja.

Jamais alguém lerá algo nessa coluna defendendo a censura, caros leitores. Eu acredito e defendo o direito desses maus humoristas de dizerem todo o tipo de asneira, até mesmo por ser o que eles conseguem fazer e todo mundo precisa viver de alguma coisa. Acredito que há limites, como demonstrado agora pelo über-imbecil Lars von Trier e seu discurso nazista. Acho que o Capitão Bolsonaro comete crimes, e por isso pode ser punido, mas não por expressar opiniões, óbvio. Expressão é livre, desde que não promova crimes e ódios. A sociedade precisa tanto de liberdade quanto de limites, e saber onde começa um e termina o outro é um truque tão difícil quanto saber o que é ou não, bom, excelente humor, e o que é apenas vazio e grosseiro.

Esses caras não são humoristas; são apenas pessoas que dizem coisas tolas a partir de um certo tipo de púlpito. O púlpito os legitima. O que dizem, os desmonta. Não precisamos de leis para proteger o mundo dessas tolices. Precisamos apenas dizer a eles o que são, afirmar que o que falam não merece ser ouvido, ou, especialmente, pago.

Sem graça, o mundo fica frio como uma noite de inverno na Paulista. Sem humor, o mundo se esteriliza. Com o que esses caras dizem ele se imbeciliza, e disso, simplesmente, não precisamos. Precisamos tão somente juntar o que sabemos fazer, com o que fazemos. Que seja esse um bom desafio para o século que começa, que a Dilma crie um PAC somente para esse fim. Se tudo vale a pena quando a alma não é pequena, tudo se enche de graça quando a gente, por sorte e competência, chega e fica na graça. Tão simples, tão claro. Só falta, agora, fazer.


* Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.

Fonte: Terra Magazine

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