O aumento do consumo dos pobres não é a raiz do problema

(Foto: Agência Estado)

Por Cléber Sérgio de Seixas


Que o sistema capitalista é desigual por natureza acredito que poucos duvidam. Marxistas ou não, socialistas ou capitalistas, todos concordam que o capitalismo é exclusivo, concentrador e baseado na disputa predatória. No entanto, para não se curvarem ao discurso socialista da abolição da propriedade privada e, por extensão, do próprio capitalismo, os arautos deste sistema recorrem ao darwinismo como explicação para a competição encarniçada que o caracteriza: “só os mais fortes sobrevivem”, “o mundo não é para os fracos”, “a competição é saudável para a seleção dos mais capazes” etc. Enquanto a competição e o individualismo são louvados, a cooperação é execrada.

Já no século XIX, no célebre Manifesto Comunista, os pais do socialismo científico asseveravam que na sociedade burguesa a propriedade privada já estava abolida para nove décimos de seus membros e que ela existia para o um décimo da sociedade, isto é, para os burgueses, exatamente porque inexistia para os nove décimos restantes, o proletariado. De 1848 pra cá muita coisa mudou e tal cifra se alterou em função da conquista de mais alguns décimos por parte do proletariado, mas essa lei férrea da acumulação capitalista, que coloca em campos diametralmente opostos os interesses das duas principais classes econômicas, permanece incólume.

Quando os nove décimos a que se referiam Marx e Engels começam a desfrutar de pequenas fatias do bolo da riqueza, a classe economicamente superior logo trata de garantir que as mudanças sociais não ameacem sua hegemonia. Em praticamente todas as situações de iminência de ruptura da ordem capitalista vigente, houve violentas reações da classe dominante no sentido de frear o processo. Um exemplo clássico foi a ascensão do nazi-fascismo na Alemanha durante os anos 30 em resposta ao avanço do comunismo. É hoje notório o patrocínio da burguesia alemã aos fascistas capitaneados por Adolf Hitler.

Em situações menos extremas, como por ocasião do surgimento de Estados de bem-estar social na Europa, a burguesia optou por entregar os anéis a perder seus dedos, ou seja, admitiu reformas que não tocassem nos pilares centrais do sistema capitalista. O Estado de bem-estar social tratou de humanizar o capitalismo com mecanismos de proteção social.

Nos anos 70 uma onda neoliberal varreu o mundo e tratou de dilapidar algumas conquistas auferidas durante os anos do welfare state. Essa onda chegou ao Brasil com toda a força nos anos 90, sobretudo durante os oito anos da gestão de Fernando Henrique Cardoso. Naqueles anos, o desmonte do Estado correu por conta de privatizações, austeridade fiscal, arrocho salarial e outros mecanismos preconizados pelo Consenso de Washington.

De oito anos pra cá, em função de uma política econômica nada ortodoxa aos olhos dos grandes organismos financeiros internacionais, promovida pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva, testemunhamos a distribuição de renda promovendo a mobilidade social de grande parcela dos brasileiros. Milhões deixaram a pobreza extrema e outros tantos adentraram na classe média. Nunca antes na história desse país tantos adquiriram automóveis, fizeram um curso superior, viajaram de avião, frequentaram shopping centers, adquiriram produtos tecnológicos de maior valor agregado etc.

Trata-se de um processo que não é visto com bons olhos pela elite tupiniquim. Se, por exemplo, os pobres começarem a freqüentar uma universidade, onde as madames de Higienópolis ou do Leblon vão encontrar empregadas domésticas ou diaristas? Não são poucos os que se incomodam com a ocupação pelos pobres de nichos antes restritos aos indivíduos de classes mais abastadas. Para estes, os pobres estão tumultuando os aeroportos, complicando o trânsito, rebaixando o nível do ensino superior e poluindo a paisagem nos shopping centers. É nesse contexto que surgem exemplos como o do jornalista Luiz Carlos Prates, segundo o qual os acidentes de trânsito são “resultado deste governo espúrio que popularizou, pelo crédito fácil, o carro para quem nunca tinha lido um livro”.

Assim com os malthusianos atribuíam a culpa pela fome aos próprios trabalhadores, que se reproduziriam num ritmo maior que a produção de alimentos, muitos, atualmente, vêem no maior acesso ao consumo pelas classes economicamente menos favorecidas a culpa pelas mazelas do capitalismo. Segundo essa receita, essas “invasões bárbaras” deveriam ser detidas por mecanismos neoliberais que preconizam, por exemplo, a manutenção de um exército de mão-de-obra de reserva, pré-requisito para o enfraquecimento dos sindicatos e para o rebaixamento dos salários – este último consistiria num freio ao aumento do consumo e, por conseguinte, num inibidor da inflação. Tais mecanismos garantem que as condições de cidadão e consumidor fiquem restritas a ínfimas parcelas da população.

O trânsito caótico das cidades brasileiras, por exemplo, é um indicativo de que o sistema capitalista não comporta a massificação de um nível de consumo nos padrões norte-americanos. Cada vez mais brasileiros adquirem seu veículo para fugir do desconforto do transporte público, o que cria gargalos insuportáveis no tráfego das grandes cidades, acidentes nas estradas, poluição, stress etc. O automóvel, desde primórdios do século passado, é um símbolo de individualidade. Se na China cada cidadão tivesse o mesmo nível de consumo que um norte-americano de classe média e possuísse um automóvel, quantos planetas seriam necessários para dar conta da demanda de consumo? Contudo, a solução para evitar a exaustão do nosso sistema de transporte não é evitar que os pobres adquiram um carro, mas melhorar e massificar o transporte público de passageiros.

Tal questão nos leva à reflexão de que há algo errado nesse sistema. E a solução dos erros não passa pela sujeição dos mais pobres a níveis mínimos de consumo, e sim pelo fim do desperdício protagonizado pelas classes mais favorecidas. Para o bem do planeta, os níveis de consumo devem ser equalizados levando em conta a sustentabilidade.

A fórmula Luiz Carlos Prates consiste em deter o processo de ascensão social ora em curso, impedindo aos pobres o acesso ao consumo de bens que por décadas ficou restrito aos mais abastados. Se tal receita for seguida, estaremos confessando que a forma de combater a pobreza é matando mendigos, ou seja, concentrar a ação sobre os efeitos enquanto o cerne da questão permanece intacto.

Abaixo reproduzo um vídeo do infeliz comentário do jornalista Luiz Carlos Prates.

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