SARNEY E AS CAPITANIAS HEREDITÁRIAS

Por Affonso Romano de Santanna

Quem sabe os professores mais criativos podem aproveitar o que está ocorrendo no Senado (e no Maranhão e no Amapá) para desenvolver ilustrativas aulas sobre as capitanias hereditárias?

Lembram-se? A gente estudava isso antigamente e era muito chato. Mandavam decorar os enormes nomes dos donatários, cheios de Tourinho e Pero, Cunha. Depois, ficava tudo resumido ao se saber que apenas as capitanias de Pernambuco (com Duarte Coelho) e de São Vicente (Martin Afonso) deram certo.

Era um tédio escolar, parecia inútil. Mas, de repente, nosso augusto e ínclito Senado nos faz rever e redescobrir a história. Continuo confiando nos professores criativos, que encontrarão um modo de vincular a fugacidade das notícias de hoje à estrutura ideológica de nossa formação para se tentar ver o que mudou (ou não) nesses 500 anos.

Antes de avançar, no entanto, vou inserir aqui uma estorinha recente e de grande eficácia pedagógica. Outro dia, estava eu na capitania de Pernambuco e lá me falaram de novo de Duarte Coelho. Vejam como o ontem & hoje continuam fundidos. O pintor Carlos Pragana me contou que quando Miguel Arraes, há uns 40 anos, assumiu pela primeira vez o governo da brava capitania de Pernambuco, começou a ter problemas com usineiros e trabalhadores dos canaviais. Era a época em que estava surgindo aquela agitação das Ligas Camponesas lideradas por Julião.

Diante dos impasses, Miguel Arraes resolveu fazer uma reunião com os usineiros lá no Palácio das Princesas – palácio, diga-se de passagem, criado em 1786 pelo governador José César de Menezes. E conversa vai, conversa vem, os usineiros todos em volta da mesa, Arraes ali, capitaneando as dissensões, os usineiros fazendo suas reivindicações, pedindo isso e mais aquilo, se explicando, se justificando... Até que, ao fim da reunião, meio desanimado, Arraes, com aquela cara enigmática de sertanejo, falou pausadamente aos usineiros:

– Meus amigos, ouvi tudo o que me disseram atentamente e apenas quero lhes dizer o seguinte: Realmente, nada mudou desde os tempos de Duarte Coelho!

Nada mudou desde os tempos de Duarte Coelho – poderia algum senador repetir em meio àqueles debates lá na Câmara Alta, ante a interminável lista de infrações éticas e apropriações econômicas comandadas pelo atual donatário da capitania do Maranhão, José Sarney.

Os livros de história repetem que, durante as capitanias hereditárias, os eleitos recebiam concessões em caráter perpétuo e hereditário. Havia a carta de doação, depois a carta foral, e o donatário, repetindo o modelo piramidal de apropriação e expropriação dos bens públicos, nomeava os donos das sesmarias. Ou seja, estabelecia-se logo a fusão entre a coisa pública e a privada.

É possível discutir o mérito das capitanias. Sarney e outros estão dizendo que isso é assim mesmo e assim deve ficar. Ora, a rigor, até se entende que o projeto das capitanias hereditárias era o que de mais avançado podia o monarca português naquela época. Metade do mundo estava nas mãos de Portugal e o rei contava com uma pequena elite para administrar metade da Terra e metade dos mares. Mas, convenhamos, manter o mesmo esquema hoje é ser não apenas historicamente retardatário, mas indecente predador dos bens públicos.

Há dias circula pela internet a lista surpreendente de edifícios, cidades, creches, pontes, ruas, avenidas, becos e praças maranhenses que levam o nome de Sarney e de seus subdonatários. É a marca indelével do crime. O sistema de apropriação onomástica é um gritante exemplo da espoliação semântica. Não basta ocupar os cargos, arranjar colocação para os apaniguados. É necessário deixar a marca, o sinete medieval do próprio nome inscrito na paisagem urbana e rural.

A antiga capitania do Maranhão – chefiada por João de Barros, Aires da Cunha e Fernão Álvares da Cunha – ia até a Amazônia. Era muita terra, muito espaço, muito poder. Mas isso foi há 500 anos. Será que o Brasil do século 21 vai persistir nesse equívoco?

Comentários

mallu disse…
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