ANISTIA - 30 ANOS
Por Frei Betto
Várias manifestações programadas para o dia 22 comemorarão (fazer memória) os 30 anos da Lei de Anistia. A Lei 6.683 foi sancionada pelo general João Figueiredo, então presidente da República, em 28 de agosto de 1979. Teve por objetivo atender, prioritariamente, os interesses das Forças Armadas.
Peça de aberração jurídica, a lei diz, em seu primeiro artigo, que “é concedida anistia a todos quantos (...) cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. No parágrafo 1º, afirma-se: “Consideram-se conexos (...) os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
O adjetivo “conexo” é o guarda-chuva sob o qual se abrigam todos aqueles que, em nome da lei e acobertados pelo governo militar, torturaram, assassinaram e deram sumiço nos corpos de suas vítimas. Ora, como se pode anistiar quem jamais foi considerado culpado ou condenado? Anistia significa perdão. Perdoa-se quem cometeu uma falta ou pecado. Se jamais os algozes assumiram os hediondos atos praticados por eles, por que beneficiá-los com a anistia?
Anistia, em sua etimologia, procede da mesma raiz latina de amnésia, perda da memória, esquecimento. É humanamente possível pedir a todos nós, que padecemos nas salas de tortura e nos cárceres, esquecer os sofrimentos? Pode-se esperar que a família de Frei Tito ou de Vladimir Herzog esqueça do ente querido assassinado pela ditadura? É justo nutrir a expectativa de que a mãe de Heleny Guariba ou os filhos de José Porfírio esqueçam que eles desapareceram? Onde estão seus corpos? Por que não entregá-los às famílias para sepultamento condigno?
O “conexo” encerra o reconhecimento, por parte da ditadura, de que seus agentes “cometeram crimes”. Se os “subversivos” foram duramente castigados pelos “crimes” cometidos, por que os crimes “conexos” praticados em nome do Estado devem permanecer impunes? Não se trata de revanchismo, e sim de justiça. O papel do Estado é preservar a integridade física e a vida de todos os cidadãos e cidadãs. Se ele, que tem o monopólio da violência, a pratica de forma arbitrária, perde a sua legitimidade e mina os princípios elementares do direito.
A tortura não é um crime comum, é um crime de lesa-humanidade, imprescritível. Como disse Sartre, a tortura não é desumana, é humana. Nenhum animal submete outro à tortura. Os animais se eliminam na cadeia predatória. Só o ser humano comete a atrocidade de fazer o semelhante conflitar-se entre a dor e os princípios que abraçou.
A anistia, embora seja uma vitória parcial, não foi “ampla, geral e irrestrita”, como queriam as vítimas da ditadura. Reza o parágrafo 2 do artigo 1º: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Tudo isso foi praticado pelos agentes da repressão.
As vítimas de ontem são os vitoriosos de hoje. Elas não se envergonham de mostrar a cara e manter viva a memória nacional, ao contrário dos torturadores, que trafegam pelas sombras e insistem em negar o que fizeram.
O Brasil se redemocratizou, embora setores de nossas forças armadas e do Poder Judiciário ainda não tenham se dado conta disso. Por isso, mantêm arquivos secretos, recusam-se a apontar o destino dos desaparecidos e devolver seus restos mortais às suas famílias. E, por vezes, ressuscitam a censura à imprensa para defender interesses escusos de políticos oligarcas.
Para que a ditadura não se repita no Brasil – e Honduras demonstra que nem sempre o passado passou –, é preciso que as novas gerações saibam o que aqui ocorreu entre 1964 e 1985. Daí a importância do Memorial da Resistência em São Paulo, instalado no mesmo prédio que abrigou, entre 1940 e 1983, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) – órgão de repressão. Ali, até 18 de outubro, há uma exposição do que significou a resistência ao regime militar. E os interessados podem consultar banco de dados, fotos, objetos, dossiês e prontuários encontrados nos arquivos da polícia política.
É preciso lembrar: segundo a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a ditadura brasileira produziu 474 mortos e desaparecidos; 4.877 políticos tiveram seus mandatos cassados; 10 mil pessoas foram exiladas; cerca de 20 mil condenadas por auditorias militares.
Livros como Brasil: Nunca Mais e Direito à Memória e à Verdade retratam a verdadeira face da ditadura. À memória e à verdade falta acrescer a justiça, para que anistia não seja um termo conexo a amnésia.
Fonte: Jornal Estado de Minas - 20 de agosto de 2009
Várias manifestações programadas para o dia 22 comemorarão (fazer memória) os 30 anos da Lei de Anistia. A Lei 6.683 foi sancionada pelo general João Figueiredo, então presidente da República, em 28 de agosto de 1979. Teve por objetivo atender, prioritariamente, os interesses das Forças Armadas.
Peça de aberração jurídica, a lei diz, em seu primeiro artigo, que “é concedida anistia a todos quantos (...) cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. No parágrafo 1º, afirma-se: “Consideram-se conexos (...) os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
O adjetivo “conexo” é o guarda-chuva sob o qual se abrigam todos aqueles que, em nome da lei e acobertados pelo governo militar, torturaram, assassinaram e deram sumiço nos corpos de suas vítimas. Ora, como se pode anistiar quem jamais foi considerado culpado ou condenado? Anistia significa perdão. Perdoa-se quem cometeu uma falta ou pecado. Se jamais os algozes assumiram os hediondos atos praticados por eles, por que beneficiá-los com a anistia?
Anistia, em sua etimologia, procede da mesma raiz latina de amnésia, perda da memória, esquecimento. É humanamente possível pedir a todos nós, que padecemos nas salas de tortura e nos cárceres, esquecer os sofrimentos? Pode-se esperar que a família de Frei Tito ou de Vladimir Herzog esqueça do ente querido assassinado pela ditadura? É justo nutrir a expectativa de que a mãe de Heleny Guariba ou os filhos de José Porfírio esqueçam que eles desapareceram? Onde estão seus corpos? Por que não entregá-los às famílias para sepultamento condigno?
O “conexo” encerra o reconhecimento, por parte da ditadura, de que seus agentes “cometeram crimes”. Se os “subversivos” foram duramente castigados pelos “crimes” cometidos, por que os crimes “conexos” praticados em nome do Estado devem permanecer impunes? Não se trata de revanchismo, e sim de justiça. O papel do Estado é preservar a integridade física e a vida de todos os cidadãos e cidadãs. Se ele, que tem o monopólio da violência, a pratica de forma arbitrária, perde a sua legitimidade e mina os princípios elementares do direito.
A tortura não é um crime comum, é um crime de lesa-humanidade, imprescritível. Como disse Sartre, a tortura não é desumana, é humana. Nenhum animal submete outro à tortura. Os animais se eliminam na cadeia predatória. Só o ser humano comete a atrocidade de fazer o semelhante conflitar-se entre a dor e os princípios que abraçou.
A anistia, embora seja uma vitória parcial, não foi “ampla, geral e irrestrita”, como queriam as vítimas da ditadura. Reza o parágrafo 2 do artigo 1º: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Tudo isso foi praticado pelos agentes da repressão.
As vítimas de ontem são os vitoriosos de hoje. Elas não se envergonham de mostrar a cara e manter viva a memória nacional, ao contrário dos torturadores, que trafegam pelas sombras e insistem em negar o que fizeram.
O Brasil se redemocratizou, embora setores de nossas forças armadas e do Poder Judiciário ainda não tenham se dado conta disso. Por isso, mantêm arquivos secretos, recusam-se a apontar o destino dos desaparecidos e devolver seus restos mortais às suas famílias. E, por vezes, ressuscitam a censura à imprensa para defender interesses escusos de políticos oligarcas.
Para que a ditadura não se repita no Brasil – e Honduras demonstra que nem sempre o passado passou –, é preciso que as novas gerações saibam o que aqui ocorreu entre 1964 e 1985. Daí a importância do Memorial da Resistência em São Paulo, instalado no mesmo prédio que abrigou, entre 1940 e 1983, o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) – órgão de repressão. Ali, até 18 de outubro, há uma exposição do que significou a resistência ao regime militar. E os interessados podem consultar banco de dados, fotos, objetos, dossiês e prontuários encontrados nos arquivos da polícia política.
É preciso lembrar: segundo a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, a ditadura brasileira produziu 474 mortos e desaparecidos; 4.877 políticos tiveram seus mandatos cassados; 10 mil pessoas foram exiladas; cerca de 20 mil condenadas por auditorias militares.
Livros como Brasil: Nunca Mais e Direito à Memória e à Verdade retratam a verdadeira face da ditadura. À memória e à verdade falta acrescer a justiça, para que anistia não seja um termo conexo a amnésia.
Fonte: Jornal Estado de Minas - 20 de agosto de 2009
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