Profecias de um retirante de Caetés

Por Elias Botelho

O sol copioso queima impiedosamente como braseiro. O “pau-de-arara” roda. Os ocupantes da carroçaria olham para trás e só enxergam poeira. Uns deixam amores, outros levam esperanças de um dia voltar, e há quem chora por um cãozinho que ficou para trás.

Ao sacolejo, a viagem segue. O caminho incerto leva almas com feições empoeiradas. Barrigas magras são tapeadas com punhados de farinha e fragmentos de carne-de-sol ressequida pela temperatura ardente do semi-árido sertão nordestino.

Por ladeiras preguiçosas, retas cansadas e curvas sinuosas, um Retirante de Caetés observa todo cenário, por vezes inóspito, por vezes bucólico. O coração se divide entre o seu torrão estorricado e o desejo de reencontrar o pai. O lar onde a cegonha o deixou é modesto e os sonhos são ralos e minguados. A condição de pobreza, retirou, talvez, o desejo de sonhar grandes sonhos; imagina que ter apenas o que comer já é motivo de alegria.

13 sofridos dias sentado no cerne da madeira nua, o pequeno Retirante desembarca em Guarujá (SP) sob a brisa do mar do sul. Os ares agora são outros, mas o estado de pobreza pouco mudou. É preciso lutar, é preciso aprender, é preciso sobreviver. Vai à luta: limpa sapatos, entrega roupas, aprende tornear, perde um dedo, torna-se líder sindical.

Desafia a Ditadura Militar. É visto como subversivo e por isso preso, mas não se abate. Percebe que é o momento de fundar um partido político, o dos trabalhadores. Disputa o governo de São Paulo; perde, mas a luta continua…

Elege-se deputado Constituinte mais votado do Brasil. Percebe, então, que aquela casa tem um corpo honesto, mas também tem, pelo menos, 300 picaretas. Assusta o país, mas têm que aceitar. Já é umas das figuras mais influentes do Brasil.

É 1987, o país ainda não tem eleição direta à Presidência da República. O Retirante, nesse instante, já conhece bem o Congresso Nacional, suas fraquezas e deficiências partidárias, e sem nenhuma modéstia, numa entrevista à Belisa Ribeiro (Rede Globo), quando perguntado sobre o leque de nomes que se lançaram candidatos à Presidente da República, não perdeu tempo em externar algumas de suas profecias:

O Retirante: – “Com relação aos candidatos que estão aí, eu não quero julgar. Eu só quero dizer para você uma coisa: o dia que tiver eleição direta para Presidente da República, eu vou defender dentro do PT, que o PT lance um candidato à Presidência da República, porque acho que é a chance que o PT tem de mostrar para opinião pública o seu programa de governo, o seu programa de salvação desse país. Se você conseguir lançar um candidato e esse candidato conseguir difundir com precisão o programa do partido, você estará prestando uma contribuição enorme a cento e trinta e cinco milhões de brasileiros.”

Belisa: -“você aceitaria prestar essa contribuição?”

O Retirante: – “eu aceitaria. Sabe por que, Belisa? Embora eu tenha apenas o quarto ano primário, eu não me sinto inferior a nenhum desses que já governaram o Brasil. Eu posso não conhecer história, posso não conhecer geografia, posso não conhecer astronomia, mas eu conheço uma coisa que poucos deles conhecem, e não aprenderam na universidade, que é o problema do nosso povo. É por isso que me sinto capacitado para isso. Embora não tenha pretensões, embora jamais passou pela minha cabeça ser candidato. Mas eu acho que de todos esses que governaram o país nesses últimos 30 anos, eu ainda sou mais Lula.”

23 anos depois o Retirante cumpre o que profetizou. Finda seus oito anos de governo como o mais popular Presidente da República Federativa do Brasil, com mais 87% de aprovação. Se não resolveu tudo, há de considerar que o cenário mudou e muito desde que assumiu a Presidência. De tantas realizações, uma vai ser sempre sua marca: a de ter tirado mais de 30 milhões de brasileiros da linha da pobreza, e não mais ouvir dizer que ter apenas o que comer é motivo de realização pessoal.


Fonte: site da revista Carta Capital
.

Comentários