José Serra e seu descompasso com o mundo
Por Idelber Avelar
As declarações feitas por José Serra sobre política externa ao longo da campanha impressionam por sua irresponsabilidade, truculência, ignorância, xenofobia, belicismo, leviandade, provincianismo, estreiteza de visão e isolacionismo. Postas em prática como política de Estado, seriam receita certa para que o Brasil jogasse no lixo boa parte do prestígio internacional que acumulou durante os últimos anos. Com levianas referências ao Irã, aos vizinhos-irmãos do Mercosul e à vizinha-irmã Bolívia, o Sr. José Serra demonstrou seu total despreparo para suceder o presidente Lula como porta-voz do Brasil no mundo. As recentes acusações ao PT, de manter “relações” com as Farc, mostram que o candidato do PSDB optou por tentar mobilizar o ódio como cabo eleitoral. Não costuma dar certo.
Na RBS, no dia 6 de maio, em meio a uma das vitórias mais expressivas da história da diplomacia brasileira, José Serra saiu-se com a pérola de que “Eu não receberia nem visitaria o presidente Ahmadinejad. Mas manteria com o Irã relações normais, comerciais”. O gênio José Serra quer inventar jabuticaba jamais vista na história da diplomacia: relações “normais” nas quais um dos lados se permite estabelecer de antemão que não recebe nem visita o outro. Com que autoridade ele vem dizer que não recebe nem visita um chefe de nação importante, reconhecido como legítimo por toda a comunidade internacional? Será pura tentativa de mobilizar o ódio e a xenofobia para dividendos eleitorais, esse alinhamento com uma posição que só o estado de Israel e as piores forças políticas dos EUA continuam mantendo? Se ainda restasse a Serra um mínimo de humildade e disposição de ouvir e aprender – coisa que não tem faltado ao presidente Lula –, ele teria se lembrado de que há mais história em um milímetro cúbico de cultura persa que em toda a pobre coalizão que o sustenta, formada pelo rancor de uma pequena parcela da classe média brasileira, algumas oligarquias anacrônicas e o intelectualmente indigente e eticamente enlameado pseudo-jornalismo das Globos, Vejas e Folhas.
O Brasil é um país jovem, de importância crescente, e os melhores momentos de sua excepcional diplomacia se deveram sempre à opção por paz, autodeterminação dos povos e disposição ao diálogo. E vem esse senhor dizer que não conversa com o chefe político da milenar civilização persa? Com que direito? O presidente brasileiro recebe e visita até mesmo o chefe do estado israelense, que mantém há 43 anos a mais longa e brutal ocupação militar estrangeira da era moderna, marcada por violações a dezenas de resoluções da ONU. E José Serra quer ganhar votinhos às custas da demonização do presidente do Irã, país que nunca invadiu ninguém e onde o Brasil é visto como nação amiga?
Os insultos aos países vizinhos são, a curto prazo, de consequências ainda mais graves. Em declaração à FIEMG, José Serra qualificou o Mercosul como uma “farsa”, para depois tentar consertar o desastre dizendo que era necessário “flexibilizá-lo”. O candidato ainda não explicou como se procede para flexibilizar uma farsa, mas é nítida sua hostilidade aos pilares da integração política pacífica da América do Sul. Exímia desmontagem dessa verdadeira farsa que é a sequência de declarações de Serra sobre o Mercosul já foi feita por Martín Granovsky, analista internacional argentino, com fatos, números e argumentos (em texto disponível também em português, em tradução de Katarina Peixoto, para a Agência Carta Maior). Com elegância, Granovsky lembra a José Serra o óbvio: “a chave da estabilidade sul-americana é a sólida relação entre a Argentina e o Brasil”; com as políticas de integração do Mercosul, ambos cresceram e fizeram a pobreza diminuir, sendo pouco afetados pela crise que vem devastando países como a Grécia, a quem se impõe agora o mesmo “remédio” do FMI, de tão nítida lembrança para brasileiros e argentinos que viveram sob FHC e Menem. Na América Latina, quem mais sofreu a crise recente foi o México, justamente o país que optou por não diversificar seu comércio exterior e atrelar-se aos EUA.
A acusação de José Serra ao governo boliviano, de cumplicidade com o tráfico de cocaína, é episódio gravíssimo, sobre o qual o governador deve desculpas e/ou explicações. A declaração é desprovida de qualquer tipo de provas, aposta na confusão ignorante entre folha de coca e cocaína, e estimula a xenofobia e o racismo. Seja qual for a política que você defenda para as drogas ou seu grau de apoio à integração e à colaboração sul-americanas, a acusação feita por José Serra é um desastre de relações internacionais. Estudando um pouquinho de história da Bolívia, o senhor Serra teria uma dimensão do ineditismo que é a existência de um governo democrático estável, que combina crescimento e redução da desigualdade no país.
O mais recente episódio foi a desastrada acusação de seu vice, Índio da Costa (DEM), ao PT, segundo a qual o partido estaria “ligado” às Farc e ao narcotráfico. Tentando depois corrigir o desastre, José Serra limitou a acusação à suposta relação do PT com as Farc, salientando que estas, sim, traficam drogas. O fato mais óbvio sobre o conflito colombiano é que o dinheiro da droga financia todos os atores políticos, incluídos os paramilitares e setores do próprio aparato estatal. Até mesmo setores da direita latino-americana reconhecem que não há solução possível para o conflito colombiano sem que todos os atores políticos se sentem à mesa de negociações. Com José Serra no comando do país, poderíamos renunciar a qualquer protagonismo brasileiro na resolução do problema. Podemos, inclusive, esperar que a posição brasileira seja a de piorar ainda mais a situação de conflito. Seria uma ruptura com as melhores tradições da nossa diplomacia.
José Serra tem todo o direito de defender a política externa que seu partido executou nos anos 90, de alinhamento automático e subordinado com os Estados Unidos. Que ele tenha a coragem de colocá-la ao veredito do eleitorado brasileiro. Mas que tenha um mínimo de responsabilidade. Nossa condição de país pacificamente integrado com seus vizinhos, solidário com seu crescimento, e bem quisto nos quatro cantos do mundo é um tesouro por demais precioso para que se brinque com ele em nome de um mero, e passageiro, desespero eleitoral.
Fonte: Revista Fórum - edição 89
Na RBS, no dia 6 de maio, em meio a uma das vitórias mais expressivas da história da diplomacia brasileira, José Serra saiu-se com a pérola de que “Eu não receberia nem visitaria o presidente Ahmadinejad. Mas manteria com o Irã relações normais, comerciais”. O gênio José Serra quer inventar jabuticaba jamais vista na história da diplomacia: relações “normais” nas quais um dos lados se permite estabelecer de antemão que não recebe nem visita o outro. Com que autoridade ele vem dizer que não recebe nem visita um chefe de nação importante, reconhecido como legítimo por toda a comunidade internacional? Será pura tentativa de mobilizar o ódio e a xenofobia para dividendos eleitorais, esse alinhamento com uma posição que só o estado de Israel e as piores forças políticas dos EUA continuam mantendo? Se ainda restasse a Serra um mínimo de humildade e disposição de ouvir e aprender – coisa que não tem faltado ao presidente Lula –, ele teria se lembrado de que há mais história em um milímetro cúbico de cultura persa que em toda a pobre coalizão que o sustenta, formada pelo rancor de uma pequena parcela da classe média brasileira, algumas oligarquias anacrônicas e o intelectualmente indigente e eticamente enlameado pseudo-jornalismo das Globos, Vejas e Folhas.
O Brasil é um país jovem, de importância crescente, e os melhores momentos de sua excepcional diplomacia se deveram sempre à opção por paz, autodeterminação dos povos e disposição ao diálogo. E vem esse senhor dizer que não conversa com o chefe político da milenar civilização persa? Com que direito? O presidente brasileiro recebe e visita até mesmo o chefe do estado israelense, que mantém há 43 anos a mais longa e brutal ocupação militar estrangeira da era moderna, marcada por violações a dezenas de resoluções da ONU. E José Serra quer ganhar votinhos às custas da demonização do presidente do Irã, país que nunca invadiu ninguém e onde o Brasil é visto como nação amiga?
Os insultos aos países vizinhos são, a curto prazo, de consequências ainda mais graves. Em declaração à FIEMG, José Serra qualificou o Mercosul como uma “farsa”, para depois tentar consertar o desastre dizendo que era necessário “flexibilizá-lo”. O candidato ainda não explicou como se procede para flexibilizar uma farsa, mas é nítida sua hostilidade aos pilares da integração política pacífica da América do Sul. Exímia desmontagem dessa verdadeira farsa que é a sequência de declarações de Serra sobre o Mercosul já foi feita por Martín Granovsky, analista internacional argentino, com fatos, números e argumentos (em texto disponível também em português, em tradução de Katarina Peixoto, para a Agência Carta Maior). Com elegância, Granovsky lembra a José Serra o óbvio: “a chave da estabilidade sul-americana é a sólida relação entre a Argentina e o Brasil”; com as políticas de integração do Mercosul, ambos cresceram e fizeram a pobreza diminuir, sendo pouco afetados pela crise que vem devastando países como a Grécia, a quem se impõe agora o mesmo “remédio” do FMI, de tão nítida lembrança para brasileiros e argentinos que viveram sob FHC e Menem. Na América Latina, quem mais sofreu a crise recente foi o México, justamente o país que optou por não diversificar seu comércio exterior e atrelar-se aos EUA.
A acusação de José Serra ao governo boliviano, de cumplicidade com o tráfico de cocaína, é episódio gravíssimo, sobre o qual o governador deve desculpas e/ou explicações. A declaração é desprovida de qualquer tipo de provas, aposta na confusão ignorante entre folha de coca e cocaína, e estimula a xenofobia e o racismo. Seja qual for a política que você defenda para as drogas ou seu grau de apoio à integração e à colaboração sul-americanas, a acusação feita por José Serra é um desastre de relações internacionais. Estudando um pouquinho de história da Bolívia, o senhor Serra teria uma dimensão do ineditismo que é a existência de um governo democrático estável, que combina crescimento e redução da desigualdade no país.
O mais recente episódio foi a desastrada acusação de seu vice, Índio da Costa (DEM), ao PT, segundo a qual o partido estaria “ligado” às Farc e ao narcotráfico. Tentando depois corrigir o desastre, José Serra limitou a acusação à suposta relação do PT com as Farc, salientando que estas, sim, traficam drogas. O fato mais óbvio sobre o conflito colombiano é que o dinheiro da droga financia todos os atores políticos, incluídos os paramilitares e setores do próprio aparato estatal. Até mesmo setores da direita latino-americana reconhecem que não há solução possível para o conflito colombiano sem que todos os atores políticos se sentem à mesa de negociações. Com José Serra no comando do país, poderíamos renunciar a qualquer protagonismo brasileiro na resolução do problema. Podemos, inclusive, esperar que a posição brasileira seja a de piorar ainda mais a situação de conflito. Seria uma ruptura com as melhores tradições da nossa diplomacia.
José Serra tem todo o direito de defender a política externa que seu partido executou nos anos 90, de alinhamento automático e subordinado com os Estados Unidos. Que ele tenha a coragem de colocá-la ao veredito do eleitorado brasileiro. Mas que tenha um mínimo de responsabilidade. Nossa condição de país pacificamente integrado com seus vizinhos, solidário com seu crescimento, e bem quisto nos quatro cantos do mundo é um tesouro por demais precioso para que se brinque com ele em nome de um mero, e passageiro, desespero eleitoral.
Fonte: Revista Fórum - edição 89
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