Os movimentos sociais no contexto da democracia

Por Cléber Sérgio de Seixas

Nossa democracia é ainda recente. Para conquistá-la, muitos pagaram um preço altíssimo. No pós-64, Os que ousaram combater oa tirania pela única via que restou após a supressão de todas as alternativas democráticas e pacíficas, sofreram nas mãos de verdugos fardados a serviço dos interesses do capital transnacional e da burguesia tupiniquim, ciosa em defender seu status quo de classe social dominante. Os que sobreviveram, carregaram e carregam no corpo as marcas resultantes das barbáries contra si cometidas. Os que morreram, ainda hoje não têm o reconhecimento que merecem por terem oferecido suas vidas no altar da luta pela justiça social e pela redemocratização, o que se atesta facilmente ao verificar que nossos monumentos, praças, ruas, viadutos, pontes e estádios de futebol ainda hoje levam os nomes daqueles que contribuíram para que uma noite de 21 anos se abatesse sobre a tão claudicante democracia brasileira. 

Quando os desdobramentos de uma transição lenta, gradual e segura aos interesses dos golpistas de 64 se transformaram numa torrente que não mais se poderia deter, uma negociação foi feita “por cima”, uma transição foi orquestrada de forma que a volta da democracia não punisse aqueles que a suprimiram. A Lei da Anistia permitiu a volta dos degredados e a devolução de seus direitos políticos, da mesma forma que garantiu e garante a impunidade dos agentes da ditadura. Assim, o povo brasileiro recebeu das mãos dos militares uma democracia pela metade, maculada por resquícios da ditadura. Recebeu-a, diga-se de passagem, das mãos de um presidente que dizia preferir cheiro de cavalos a cheiro de povo. 

Três anos depois, foi promulgada uma nova Constituição, dessa vez sob o respaldo de uma sociedade civil que se organizava, ainda que alquebrada por duas décadas de opressão. A atual Carta Magna fora escrita sob o olhar atento e pressão dos movimentos sociais. No entanto, 28 anos depois do fim do regime militar, direitos preconizados em nossa Carta Cidadã ainda não são totalmente palpáveis às minorias, mesmo depois da massiva inclusão social dos últimos 10 anos.

No bojo do Estado democrático conseguido a duras penas após o término da ditadura cívico-militar (1964-1985), tem-se um terreno menos movediço no que tange às relações entre os movimentos sociais e o aparelho estatal. Se, antes, reivindicações da sociedade civil organizada eram tratadas como caso de polícia, hoje, no gozo das liberdades democráticas, são casos de políticas, ou seja, são tratadas no âmbito das políticas públicas.

Nos idos de noventa, com a chegada ao poder de governantes neoliberais, como Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, recrudesceu a repressão a movimentos sociais, como atestam os massacres de Eldorado dos Carajás e Corumbiara. Naquele tempo, a hegemonia do ideário neoliberal fomentava o enfraquecimento do Estado social, deslocando deste para as organizações da sociedade civil a responsabilidade sobre o enfrentamento das refrações da questão social. A chegada de Lula ao poder provocou o refluxo da repressão aos movimentos sociais, contudo, isso não significou – e continua a não significar sob a gestão Dilma – que tais movimentos chegaram ao paraíso. 

Na atualidade, eles procuram articular-se com organizações formais, como ONG’s e conselhos gestores de políticas públicas, o que desloca o eixo da participação social para a parceria com o setor público estatal. Isso conduz a uma tendência de aparelhamento e cooptação dos movimentos sociais por governos e por representantes do legislativo, o que fica visível, por exemplo, ao se constatar que um grande número de associações de bairro estão sob o controle direto ou indireto de vereadores. Isso também é notório quando se verifica que em conselhos de políticas, apesar do requisito legal da paridade entre representantes do governo e da sociedade civil, quase sempre há uma hegemonia dos primeiros sobre os representantes dos movimentos sociais, ficando estes últimos, muitas vezes, subjugados em suas atuações. Isso acarreta desconfiança em relação a alguns mecanismos de participação política tradicionais à disposição da iniciativa popular, conquistados a duras penas e sacramentados na Constituição de 1988.

A construção de uma agenda política que aprofunde o diálogo sociedade civil organizada-esfera pública, passa necessariamente pelo aprofundamento dos mecanismos de participação democrática hora existentes, bem como pela busca por meios de participação mais diretos como plebiscitos, referendos e iniciativas populares, conforme é preconizado no Art. 14, incisos, I, II e III de nossa Constituição.

Parte dos que foram às ruas em junho último, levaram consigo um sentimento de desilusão com a democracia formal, essa que só é palpável no momento do voto. A pressão das ruas forçou a Presidência, num primeiro momento, e em caráter emergencial, a um diálogo mais franco e direto com os representantes daqueles que pediam mudanças.

Infelizmente, faltou a muitos que saíram às ruas nas “jornadas de junho” uma identidade em torno de uma causa – a busca de um denominador comum - e a especificação de adversários a serem combatidos. Os movimentos sociais têm que buscar uma articulação entre si, haja vista que sua prevalência pressupõe que eles não estejam isolados temática ou espacialmente. Sem isso, resta apenas uma turba que toma as ruas de assalto sem saber o que quer e onde quer chegar. Além disso, um denominador comum é o que possibilita a conexão dos movimentos em rede. Tal conexão exponencia o poder de pressão de tais movimentos e dá-lhes mais capilaridade.

Assim, os movimentos sociais pressupõem:
- identidade em torno de uma causa, ou busca de um objetivo que seja comum visando coesão para a luta;
- definição coletiva do campo de conflitos e dos principais adversários a serem enfrentados nesse campo. Em suma, deve-se definir quem são os antagonistas, ou seja, saber contra quem se luta e onde se pretende lutar;
- construção de um projeto ou utopia de transformação social, cultural ou sistêmico que sirva de norte às ações.

Os atores que integram os níveis organizacionais da sociedade civil, interagindo, resultam nas redes de movimentos sociais. As ciber redes, como as abrigadas no Facebook, são exemplos de redes de movimentos sociais. 

Passamos pelo mais longo período democrático de nossa história. Trilhou-se um longo caminho até aqui, com um alto preço pago por aqueles que em tempos sombrios ousaram questionar um sistema opressor impostos pelas elites. A democratização ampliou as possibilidades de protagonismo dos movimentos sociais no cenário político. Contudo, isso não significa que os mesmos alcançaram seu Éden. Há, ainda, muito a ser feito. Assim sendo, os movimentos sociais devem estar atentos às mudanças no cenário político nacional, buscando a melhor forma de organizar-se para enfrentar os desafios que o porvir reserva. 

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