FAO: José Graziano reencontra Josué de Castro
Por Vandeck Santiago*
Dos últimos diretores-gerais da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o recém-eleito José Graziano da Silva é o que chega com as melhores condições para exercer o cargo e renovar a organização. O atual diretor-geral, Jacques Diouf, é senegalês; o antecessor dele, Edouard Saouma, libanês. Somados, os mandatos dos dois chegam a incríveis 35 anos. Mas, fora do Senegal, do Líbano e de setores mais diretamente envolvidos nas questões da Organização, Diouf e Souma são dois nomes desconhecidos.
Não que isso signifique um juízo de valor de uma eventual incapacidade deles na gestão da FAO; é antes uma constatação de que tem sido difícil a tarefa de ampliar os poderes da instituição para além dos seus limites. Pode ser que amanhã estejamos dizendo algo semelhante de José Graziano. Mas todos os indicativos hoje existentes apontam em outra direção. Fazendo-se concessão a uma dose mínima de otimismo (deixemos o pessimismo para aqueles que, no Brasil, já estão torcendo contra mesmo antes de o jogo começar...), fazendo essa concessão pode-se até dizer que Graziano terá a oportunidade de fazer uma gestão histórica.
A FAO teve até agora oito diretores-gerais. De todos, o que conseguiu deixar o nome marcado sem que seja preciso consultar a enciclopédia foi o britânico John Boyd Orr (amigo de Josué de Castro, de quem vamos falar daqui a pouco). Ele foi o primeiro diretor-geral, e exerceu o cargo no período de 1945 a 1948. Ganhou até o Prêmio Nobel da Paz, em 1949, pelos esforços na luta contra a fome e pela paz mundial. De lá pra cá os diretores-gerais da instituição viraram nomes que a gente lê no jornal e não se lembra depois.
Feita a contextualização, voltemos a Graziano. Aos argumentos que embasam o otimismo com a futura gestão dele: primeiro, é um nome do Brasil, país que se tornou um dos novos players da geopolítica internacional – característica que, como se sabe, tem a capacidade de encorpar propostas. E que chega acompanhada do prestígio que o ex-presidente Lula conquistou no exterior. Ao noticiar a vitória de Graziano, por exemplo, o Le Monde escreveu que ele era “ex-ministro de segurança alimentar do carismático presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva” e que encarnava “o programa brasileiro de luta contra a fome, considerado como um sucesso retumbante.”
Segundo: o Brasil tornou-se nos últimos anos referência mundial em políticas públicas de combate à fome e redução da pobreza – acumulou uma série de experiência que servem como uma espécie de portfólio sobre medidas para tratar o problema. Quem abriu essa trilha foi um brasileiro, nascido e criado à beira dos mangues recifenses: o médico e geógrafo Josué de Castro (1908-1973), autor de Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), obras matriciais do assunto. Josué tem uma história também ligada à FAO: durante dois mandatos (1952-1956), foi presidente do conselho da Organização. Ele não foi diretor-geral; o primeiro latino-americano a ocupar este cargo será Graziano. O diretor-geral é o que gere diretamente a FAO; o presidente do conselho tem outras atribuições.
Terceiro: aos 61 anos, Graziano tem uma carreira estreitamente ligada às questões da fome, desenvolvimento rural e agricultura, áreas em que atuou como acadêmico e militante sindical e político. Tem doutorado em Ciências Econômicas (Unicamp) e dois pós-doutorados (EUA e Inglaterra). Participou das Caravanas da Cidadania, onde se gerou o Fome Zero. Desde 2006 é o representante da FAO para América Latina e Caribe – o que significa que está familiarizado com a gestão da organização. Em seu discurso como candidato, pronunciado em 13 de abril passado, deu um indicativo de como deve agir, buscando o consenso: “Como conselheiro do presidente Lula durante 25 anos, desde o tempo em que ele era um líder sindical até quando fui contratado pela FAO, aprendi a importância de construir o consenso para avançar com rapidez”.
Terá muitos desafios nos próximos três anos – o mandato vai de 2012 a 2015. É um momento de crise alimentar, provocada pela alta dos preços. De enfraquecimento da FAO, que teve orçamento reduzido e se enrosca na própria burocracia. De disputas entre países ricos (com subsídios que impedem a entrada de produtos dos países menos desenvolvidos). De um mundo com quase um bilhão de esfomeados – e em que, para citar frase sempre lembrada pela própria instituição, uma criança morre de fome a cada seis segundos.
Poucos se deram ao trabalho de ler, mas o primeiro ponto do programa de Graziano como candidato é a erradicação da fome. “O sucesso da FAO e de seu diretor-geral”, afirmou, “será julgado em última instância pela velocidade com que se reduzir o número de pessoas com fome no mundo”. Aqui o caminho dele se cruza novamente com o de Josué de Castro, para quem só havia um tipo de desenvolvimento: o “desenvolvimento do homem”.
As disputas pela alimentação não são de agora. Josué de Castro passou os dois mandatos como presidente do conselho da FAO tentando criar uma reserva internacional contra a fome. Aproveitaria excedente de alimentos das nações ricas, que serviria de socorro para abastecer os países que – em razão de crises econômicas, guerras ou desastres ambientais – estivessem sofrendo com a escassez de comida. A ideia nunca pôde ser levada à prática, por absoluta falta de interesse das nações ricas. No discurso de despedida, em 1956, Josué se disse “decepcionado” com o resultado obtido: “Não fomos suficientemente ousados, não tivemos a coragem suficiente para encarar, de frente, o problema e buscar as suas soluções”.
Apoios e alertas valiosos José Graziano já tem. O caminho agora está aberto para avançar.
*Vandeck Santiago é jornalista e autor de Josué de Castro – O gênio silenciado (2009, Comunigraf, PE). Contatos: trumbo@uol.com.br e www.twitter.com/vandecksantiago
Fonte: Opera Mundi
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Dos últimos diretores-gerais da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o recém-eleito José Graziano da Silva é o que chega com as melhores condições para exercer o cargo e renovar a organização. O atual diretor-geral, Jacques Diouf, é senegalês; o antecessor dele, Edouard Saouma, libanês. Somados, os mandatos dos dois chegam a incríveis 35 anos. Mas, fora do Senegal, do Líbano e de setores mais diretamente envolvidos nas questões da Organização, Diouf e Souma são dois nomes desconhecidos.
Não que isso signifique um juízo de valor de uma eventual incapacidade deles na gestão da FAO; é antes uma constatação de que tem sido difícil a tarefa de ampliar os poderes da instituição para além dos seus limites. Pode ser que amanhã estejamos dizendo algo semelhante de José Graziano. Mas todos os indicativos hoje existentes apontam em outra direção. Fazendo-se concessão a uma dose mínima de otimismo (deixemos o pessimismo para aqueles que, no Brasil, já estão torcendo contra mesmo antes de o jogo começar...), fazendo essa concessão pode-se até dizer que Graziano terá a oportunidade de fazer uma gestão histórica.
A FAO teve até agora oito diretores-gerais. De todos, o que conseguiu deixar o nome marcado sem que seja preciso consultar a enciclopédia foi o britânico John Boyd Orr (amigo de Josué de Castro, de quem vamos falar daqui a pouco). Ele foi o primeiro diretor-geral, e exerceu o cargo no período de 1945 a 1948. Ganhou até o Prêmio Nobel da Paz, em 1949, pelos esforços na luta contra a fome e pela paz mundial. De lá pra cá os diretores-gerais da instituição viraram nomes que a gente lê no jornal e não se lembra depois.
Feita a contextualização, voltemos a Graziano. Aos argumentos que embasam o otimismo com a futura gestão dele: primeiro, é um nome do Brasil, país que se tornou um dos novos players da geopolítica internacional – característica que, como se sabe, tem a capacidade de encorpar propostas. E que chega acompanhada do prestígio que o ex-presidente Lula conquistou no exterior. Ao noticiar a vitória de Graziano, por exemplo, o Le Monde escreveu que ele era “ex-ministro de segurança alimentar do carismático presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva” e que encarnava “o programa brasileiro de luta contra a fome, considerado como um sucesso retumbante.”
Segundo: o Brasil tornou-se nos últimos anos referência mundial em políticas públicas de combate à fome e redução da pobreza – acumulou uma série de experiência que servem como uma espécie de portfólio sobre medidas para tratar o problema. Quem abriu essa trilha foi um brasileiro, nascido e criado à beira dos mangues recifenses: o médico e geógrafo Josué de Castro (1908-1973), autor de Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), obras matriciais do assunto. Josué tem uma história também ligada à FAO: durante dois mandatos (1952-1956), foi presidente do conselho da Organização. Ele não foi diretor-geral; o primeiro latino-americano a ocupar este cargo será Graziano. O diretor-geral é o que gere diretamente a FAO; o presidente do conselho tem outras atribuições.
Terceiro: aos 61 anos, Graziano tem uma carreira estreitamente ligada às questões da fome, desenvolvimento rural e agricultura, áreas em que atuou como acadêmico e militante sindical e político. Tem doutorado em Ciências Econômicas (Unicamp) e dois pós-doutorados (EUA e Inglaterra). Participou das Caravanas da Cidadania, onde se gerou o Fome Zero. Desde 2006 é o representante da FAO para América Latina e Caribe – o que significa que está familiarizado com a gestão da organização. Em seu discurso como candidato, pronunciado em 13 de abril passado, deu um indicativo de como deve agir, buscando o consenso: “Como conselheiro do presidente Lula durante 25 anos, desde o tempo em que ele era um líder sindical até quando fui contratado pela FAO, aprendi a importância de construir o consenso para avançar com rapidez”.
Terá muitos desafios nos próximos três anos – o mandato vai de 2012 a 2015. É um momento de crise alimentar, provocada pela alta dos preços. De enfraquecimento da FAO, que teve orçamento reduzido e se enrosca na própria burocracia. De disputas entre países ricos (com subsídios que impedem a entrada de produtos dos países menos desenvolvidos). De um mundo com quase um bilhão de esfomeados – e em que, para citar frase sempre lembrada pela própria instituição, uma criança morre de fome a cada seis segundos.
Poucos se deram ao trabalho de ler, mas o primeiro ponto do programa de Graziano como candidato é a erradicação da fome. “O sucesso da FAO e de seu diretor-geral”, afirmou, “será julgado em última instância pela velocidade com que se reduzir o número de pessoas com fome no mundo”. Aqui o caminho dele se cruza novamente com o de Josué de Castro, para quem só havia um tipo de desenvolvimento: o “desenvolvimento do homem”.
As disputas pela alimentação não são de agora. Josué de Castro passou os dois mandatos como presidente do conselho da FAO tentando criar uma reserva internacional contra a fome. Aproveitaria excedente de alimentos das nações ricas, que serviria de socorro para abastecer os países que – em razão de crises econômicas, guerras ou desastres ambientais – estivessem sofrendo com a escassez de comida. A ideia nunca pôde ser levada à prática, por absoluta falta de interesse das nações ricas. No discurso de despedida, em 1956, Josué se disse “decepcionado” com o resultado obtido: “Não fomos suficientemente ousados, não tivemos a coragem suficiente para encarar, de frente, o problema e buscar as suas soluções”.
Apoios e alertas valiosos José Graziano já tem. O caminho agora está aberto para avançar.
*Vandeck Santiago é jornalista e autor de Josué de Castro – O gênio silenciado (2009, Comunigraf, PE). Contatos: trumbo@uol.com.br e www.twitter.com/vandecksantiago
Fonte: Opera Mundi
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