FHC e as massas

Fernando Henrique Cardoso nos tempos do servilismo tupiniquim

Por Cléber Sérgio de Seixas


Fernando Henrique Cardoso, o príncipe dos sociólogos cuja trajetória político-partidária o transformou em sociólogo dos príncipes, jogou por terra sua máscara social-democrata através de declarações feitas num extenso artigo publicado na Folha de São Paulo no dia 12/04.

Num trecho do artigo o ex-presidente aponta qual deve ser a estratégia do PSDB para as próximas eleições presidências, dizendo, textualmente, o seguinte: “Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os ‘movimentos sociais’ ou o ‘povão’, falarão sozinhos”. O sociólogo quer dizer que o povão já foi comprado pelas políticas compensatórias do governo Lula e que os movimentos sociais foram cooptados pelo mesmo, não restando ao PSDB alternativa senão apostar na velha e na nova classe média - os cerca de 30 milhões que os oito anos da gestão Lula arrancaram da pobreza.

Cardoso se arvora em sabedor do que pensa o povo quando afirma: “E o que se pode esperar dos políticos, pensa o povo, senão a busca de vantagens pessoais, quando não clientelismo e corrupção?” Com tais palavras o tucano-mor pretende desqualificar as opções do povo nas últimas três eleições presidenciais, tratando-o como a uma criança que se deixa seduzir por doces e balas, quando deveria almejar uma dieta composta por frutas, verduras e legumes, ou seja, um povo que se deixaria seduzir pelo assistencialismo governamental que toma corpo em programas como o bolsa família e o bolsa escola, e que por isso deve ser conduzido pela mão, tolhido de seu protagonismo político.

O infantilismo político no qual FHC enquadra o povo é coisa antiga. Já no fim da década de 70 ele queria formar uma agremiação socialista nos padrões europeus, com o povo servindo apenas de massa de manobra do partido. FHC seria, naturalmente, um grande timoneiro conduzindo massas que ele supunha incultas. Em seu livro, Betto (2006, p. 54) narra o episódio de como foi abordado por FHC, Plínio de Arruda Sampaio e Almino Afonso no fim dos anos 70 com a proposta de fundação de um novo partido político:
“Traziam uma proposta ‘iluminada’: fundar um Partido Socialista. Não o socialismo dos soviéticos, nem dos chineses e cubanos. Nada de Marx ou Lênin. Socialismo à sombra da social-democracia européia, com pluralismo partidário e venerável respeito à riqueza acumulada pelas elites. Vinham eles com a fôrma, eu entraria com o recheio: o povo”.
O povo que serviria de recheio, ao qual o autor se refere, era a militância das Comunidades Eclesiais de Base, numerosas já naquele tempo. “Recusei o papel de condutor de massas, de manipulador das bases. [...] FHC derramou toda a sua verve para tentar me demover. Três ou quatro meses depois nos reunimos para a segunda rodada. [...] FHC interrogava as razões da minha recusa” (BETTO, 2006, p. 54,55). Frei Betto sabia que da conjunção entre as CEB, o novo sindicalismo e a intelectualidade de esquerda brotaria algo novo. O Partido dos Trabalhadores (PT) foi o resultado de tal conjunção, “um partido de baixo para cima, e não de fora para dentro do país” (BETTO, 2006, p. 55). O PT tornar-se-ia o maior partido de bases do Brasil.

O partido que FHC queria fundar veio à luz em 1988, durante os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, gestado em meio às divergências entre o “centrão” e os dissidentes peemedebistas. Diferentemente dos partidos sociais-democratas europeus, o PSDB não dialoga com movimentos sociais, sindicais e congêneres.

Nos anos 90, FHC seria eleito presidente surfando nas ondas do Plano Real criado por seu antecessor Itamar Franco. Seus oito anos de governo aprofundaram o neoliberalismo e foram marcados pela adesão aos ditames do Consenso de Washington, pelo alinhamento automático aos interesses estadunidenses e pela intolerância com movimentos sociais. “Quando FHC ocupou a presidência da República, tornei-me crítico mordaz de seu governo. [...] A ponto de José Gregori, seu ministro da Justiça [...] me ligar solicitando maneirar as críticas. Sugeri que o presidente maneirasse as privatizações do patrimônio público”, pontua Betto (2006, p.56).

O PSDB, na voz de seu maior porta-voz, é agora, confessadamente, um partido da e para a classe-média. E não se trata aqui de uma classe média esclarecida e progressista, sustentáculo de qualquer nação desenvolvida, mas de uma classe extremamente conservadora, norte-americanófila, preconceituosa, atemorizada com a ascensão sócio-econômica das classes menos favorecidas e que não gosta de ocupar o mesmo espaço físico com pobres em shopping centers, aeroportos e universidades. “É a estes que as oposições devem dirigir suas mensagens prioritariamente, sobretudo no período entre as eleições, quando os partidos falam para si mesmo, no Congresso e nos governo”. É essa a classe retrógrada que a campanha eleitoral de José Serra à Presidência em 2010 retirou das sombras, e é com ela que o PSDB contará, se forem levadas em conta as orientações do seu presidente de honra no artigo supracitado.

O ex-presidente João Batista Figueiredo não disfarçou sua aversão às massas quando afirmou que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Fernando Henrique Cardoso só agora assume que seu partido deve direcionar seu discurso para as classes bem integradas ao sistema capitalista e relegar o povão a papéis subalternos no cenário político-decisório. Se o PSDB vai ter sucesso ou não é outra história e assunto para outro artigo.


Referência bibliográfica:
BETTO, Frei. A Mosca Azul. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
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