A TORTURA NÃO É CRIME POLÍTICO
Por Pedro Estevam Serrano*
O supremo Tribunal Federal está prestes a iniciar um dos julgamentos mais importantes da história do País: a análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil e pela Associação dos Juízes para a Democracia. A entidade representativa dos advogados sustenta que a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) não pode ser aplicada aos agentes do Estado autores de crimes de sangue durante a ditadura (1964-1985). Assim, tem o STF a oportunidade histórica de colocar um ponto final em questão que segue a turvar nosso passado recente e que tem consequências até os dias atuais.
Inicialmente, frise-se, é indubitável a correção do instrumento proposto pela OAB e pela AJD, visto que todas as controvérsias constitucionais acerca da recepção de leis promulgadas anteriormente à Constituição Federal de 1988 devem ser dirimidas na apreciação de ADPFs. Complementarmente, acertam também as entidades ao apontarem o cerne da questão.
O Art. 1º da Lei nº 6.683/79 estabelece que deverá ser “concedida a anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Mas é o parágrafo 1º que suscita a controvérsia, ao dizer que: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Como bem ressaltam os juristas Dalmo Dallari, Pierpaolo Bottini e Igor Tamasauskas, os crimes dos torturadores e homicidas da ditadura não podem ser considerados políticos para fins do regime jurídico protetivo oferecido a esse tipo de conduta pela Constituição Federal, pois, segundo decidido pelo próprio STF, o crime político não se caracteriza apenas pelo móvel ou intenção do agente, mas pelo fato de atentar contra a ordem vigente. Ora, “se crime político é aquele que lesiona a ordem instituída, ficam evidentemente excluídos dessa definição os delitos praticados por agentes dessa mesma ordem para garantir sua manutenção”.
Também como nos demonstram os referidos juristas, não há que se falar em conexão de tais crimes com as condutas dos que se opuseram à ditadura. No direito processual penal brasileiro, “há conexão quando os crimes são praticados pelas mesmas pessoas, ou com a mesma finalidade, ou se os delitos são praticados no mesmo contexto de tempo e de lugar e a prova de um deles interfere na prova do outro”.
Por óbvio, as torturas e homicídios não foram praticados no mesmo tempo e no calor do combate, nem tiveram a mesma intenção, contexto ou lugar das condutas delitivas da oposição. A correção jurídica do mérito da medida proposta nos parece evidente.
A questão da possibilidade de retroação de normas constitucionais originárias, como a que considera imprescritível o crime de tortura, não é objeto da demanda, deverá ser debatida futuramente, em cada caso.
Muitos dos crimes de homicídio, tortura e estupro foram cometidos contra pessoas que nada fizeram de violento, apenas manifestaram sua opinião, direito esse garantido inclusive pela Constituição da época. É o que ocorreu com Rubens Paiva, Vladimir Herzog e muitos outros cidadãos.
No plano político e ético, há um falso debate sobre que lado iniciou a violência, se o Estado ditatorial com o Ato Institucional nº 5 ou os movimentos de oposição armada ao regime. A violência iniciou-se em 1º de abril de 1964, com a ruptura violenta da ordem constitucional democrática e a deposição do governo legitimamente eleito. Cidadãos como Gregório Bezerra chegaram a ser torturados em praça pública, no dia seguinte ao golpe, sob a mera alegação de serem “comunistas”.
A selvageria cometida contra Gregório Bezerra no Recife é simbólica do que caracterizaria os atos de tortura e homicídio pelos agentes oficiais e clandestinos do regime. Tais atos tinham como vítimas imediatas as pessoas violentadas ou mortas, mas como vítima mediata a sociedade, que o arbítrio desejava dominar pelo medo, pelo terror na vida política.
A definição do crime de terrorismo é complexa, mas certamente entre seus elementos fundamentais inclui-se esse, qual seja: que o ato delituoso visa atingir a vida social e não apenas a vítima direta da violência.
O terrorismo pode ser praticado por opositores, como foi o caso dos crimes de extrema-esquerda e direita praticados contra a democracia italiana na década de 1970. Ou por estrangeiros contra um país, como foi o atentado contra as torres gêmeas de Nova York. Mas também pode ser realizado por Estados, quando seus agentes torturam e matam opositores, com o fim maior de calar a sociedade e se impor como governo. Assim ocorreu no Brasil.
Críticas devem ser feitas àqueles que pegaram em armas contra o regime, mas estas se põem mais no plano funcional, pelo voluntarismo que acabou servindo à propaganda do arbítrio, que na dimensão ética de sua conduta. Independentemente da intenção dos oposicionistas que pegaram em armas, se desejavam num futuro abstrato a instauração do socialismo ou se preferiam uma democracia popular de unidade nacional, sua luta concreta foi contra um Estado terrorista e totalitário, traduzindo-se como legítima defesa das liberdades públicas aviltadas pela violência ditatorial.
Para quem defende os valores políticos do Estado Democrático de Direito, o que legitima o uso da violência pelo Estado para impor suas normas é a sua rea-l submissão a uma pauta de princípios garantidores dos direitos fundamentais e a adoção de procedimentos de escolha dos governantes que pratiquem as regras do jogo democrático, inclusive, a plena observação das liberdades públicas que lhe são inerentes.
É inaceitável no plano ético comparar jovens vitimados com seus algozes. O que se deseja não é tanto a punição dos homúnculos que se escondem, a demonstrar sua insofismável covardia, mas sim a apuração do ocorrido e o chamamento à sua responsabilidade histórica. O que está em jogo neste julgamento é muito mais que o legítimo direito das vítimas à indenização individua-l. É o direito à reparação da grande vítima indireta do terrorismo estatal, a sociedade. Só a recuperação de sua história reparará o mal a ela causado pelo medo e pelo silêncio impostos.
A OAB, com tal iniciativa, se põe lá onde sempre esteve, na luta pelas liberdades, contra a tirania em todas suas consequências. Sem desejo de vingança, mas com o desiderato de conhecer e marcar na memória fatos cuja ciência à sociedade pertence.
*Pedro Estevam Serrano é advogado, sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano e Renault Advogados Associados, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, onde leciona. Autor de O Desvio de Poder na Função Legislativa (editora FTD) e Região Metropolitana e seu Regime Constitucional (editora Verbatim). Coautor de Dez Anos de Constituição (editora IBDC).
Fonte: site da revista Carta Capital
Inicialmente, frise-se, é indubitável a correção do instrumento proposto pela OAB e pela AJD, visto que todas as controvérsias constitucionais acerca da recepção de leis promulgadas anteriormente à Constituição Federal de 1988 devem ser dirimidas na apreciação de ADPFs. Complementarmente, acertam também as entidades ao apontarem o cerne da questão.
O Art. 1º da Lei nº 6.683/79 estabelece que deverá ser “concedida a anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. Mas é o parágrafo 1º que suscita a controvérsia, ao dizer que: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Como bem ressaltam os juristas Dalmo Dallari, Pierpaolo Bottini e Igor Tamasauskas, os crimes dos torturadores e homicidas da ditadura não podem ser considerados políticos para fins do regime jurídico protetivo oferecido a esse tipo de conduta pela Constituição Federal, pois, segundo decidido pelo próprio STF, o crime político não se caracteriza apenas pelo móvel ou intenção do agente, mas pelo fato de atentar contra a ordem vigente. Ora, “se crime político é aquele que lesiona a ordem instituída, ficam evidentemente excluídos dessa definição os delitos praticados por agentes dessa mesma ordem para garantir sua manutenção”.
Também como nos demonstram os referidos juristas, não há que se falar em conexão de tais crimes com as condutas dos que se opuseram à ditadura. No direito processual penal brasileiro, “há conexão quando os crimes são praticados pelas mesmas pessoas, ou com a mesma finalidade, ou se os delitos são praticados no mesmo contexto de tempo e de lugar e a prova de um deles interfere na prova do outro”.
Por óbvio, as torturas e homicídios não foram praticados no mesmo tempo e no calor do combate, nem tiveram a mesma intenção, contexto ou lugar das condutas delitivas da oposição. A correção jurídica do mérito da medida proposta nos parece evidente.
A questão da possibilidade de retroação de normas constitucionais originárias, como a que considera imprescritível o crime de tortura, não é objeto da demanda, deverá ser debatida futuramente, em cada caso.
Muitos dos crimes de homicídio, tortura e estupro foram cometidos contra pessoas que nada fizeram de violento, apenas manifestaram sua opinião, direito esse garantido inclusive pela Constituição da época. É o que ocorreu com Rubens Paiva, Vladimir Herzog e muitos outros cidadãos.
No plano político e ético, há um falso debate sobre que lado iniciou a violência, se o Estado ditatorial com o Ato Institucional nº 5 ou os movimentos de oposição armada ao regime. A violência iniciou-se em 1º de abril de 1964, com a ruptura violenta da ordem constitucional democrática e a deposição do governo legitimamente eleito. Cidadãos como Gregório Bezerra chegaram a ser torturados em praça pública, no dia seguinte ao golpe, sob a mera alegação de serem “comunistas”.
A selvageria cometida contra Gregório Bezerra no Recife é simbólica do que caracterizaria os atos de tortura e homicídio pelos agentes oficiais e clandestinos do regime. Tais atos tinham como vítimas imediatas as pessoas violentadas ou mortas, mas como vítima mediata a sociedade, que o arbítrio desejava dominar pelo medo, pelo terror na vida política.
A definição do crime de terrorismo é complexa, mas certamente entre seus elementos fundamentais inclui-se esse, qual seja: que o ato delituoso visa atingir a vida social e não apenas a vítima direta da violência.
O terrorismo pode ser praticado por opositores, como foi o caso dos crimes de extrema-esquerda e direita praticados contra a democracia italiana na década de 1970. Ou por estrangeiros contra um país, como foi o atentado contra as torres gêmeas de Nova York. Mas também pode ser realizado por Estados, quando seus agentes torturam e matam opositores, com o fim maior de calar a sociedade e se impor como governo. Assim ocorreu no Brasil.
Críticas devem ser feitas àqueles que pegaram em armas contra o regime, mas estas se põem mais no plano funcional, pelo voluntarismo que acabou servindo à propaganda do arbítrio, que na dimensão ética de sua conduta. Independentemente da intenção dos oposicionistas que pegaram em armas, se desejavam num futuro abstrato a instauração do socialismo ou se preferiam uma democracia popular de unidade nacional, sua luta concreta foi contra um Estado terrorista e totalitário, traduzindo-se como legítima defesa das liberdades públicas aviltadas pela violência ditatorial.
Para quem defende os valores políticos do Estado Democrático de Direito, o que legitima o uso da violência pelo Estado para impor suas normas é a sua rea-l submissão a uma pauta de princípios garantidores dos direitos fundamentais e a adoção de procedimentos de escolha dos governantes que pratiquem as regras do jogo democrático, inclusive, a plena observação das liberdades públicas que lhe são inerentes.
É inaceitável no plano ético comparar jovens vitimados com seus algozes. O que se deseja não é tanto a punição dos homúnculos que se escondem, a demonstrar sua insofismável covardia, mas sim a apuração do ocorrido e o chamamento à sua responsabilidade histórica. O que está em jogo neste julgamento é muito mais que o legítimo direito das vítimas à indenização individua-l. É o direito à reparação da grande vítima indireta do terrorismo estatal, a sociedade. Só a recuperação de sua história reparará o mal a ela causado pelo medo e pelo silêncio impostos.
A OAB, com tal iniciativa, se põe lá onde sempre esteve, na luta pelas liberdades, contra a tirania em todas suas consequências. Sem desejo de vingança, mas com o desiderato de conhecer e marcar na memória fatos cuja ciência à sociedade pertence.
*Pedro Estevam Serrano é advogado, sócio do escritório Tojal, Teixeira Ferreira, Serrano e Renault Advogados Associados, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, onde leciona. Autor de O Desvio de Poder na Função Legislativa (editora FTD) e Região Metropolitana e seu Regime Constitucional (editora Verbatim). Coautor de Dez Anos de Constituição (editora IBDC).
Fonte: site da revista Carta Capital
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