O bode expiatório da Inconfidência

Tiradentes Esquartejado, quadro de Pedro Américo (1893).

Por Cléber Sérgio de Seixas


Rio de Janeiro, manhã de 21 de abril de 1792, um sábado - um cortejo sai da cadeia pública e percorre algumas das principais ruas do centro da cidade, especialmente ornamentadas para o evento: a execução na forca de um prisioneiro. 

Como quem acompanha um auto de fé, as pessoas movem-se freneticamente, ansiosas para presenciar o fim de um indivíduo do qual pouco sabem, exceto que é alguém que ousou desafiar a autoridade portuguesa. A procissão finalmente chega ao largo da Lampadosa, onde se inicia o cerimonial. 

Após ouvir a sentença, o prisioneiro é conduzido ao patíbulo por um negro. A cerimônia se arrasta por dezoito horas. Enquanto é ajeitado todo o instrumental de execução, o réu observa a impaciente multidão. Talvez imagine como teriam sido as coisas se pessoas como aquelas que agora lhe lançam olhares, ansiosas por vê-lo estrebuchando pendurado à corda, tivessem aderido ao movimento logo que ele e os demais conspiradores tivessem tomado as ruas de Vila Rica, dando vivas à República, três anos antes. Talvez conclua que as massas são volúveis e manipuláveis. 

Quando a corda enrijece e o corpo pende no ar, terminam as esperanças de formação de uma república no Brasil e tem fim o movimento que passaria à História com o nome de Conjuração ou Inconfidência Mineira – movimento do qual participaram poetas, políticos, empresários e membros do clero. 

O condenado chamava-se Joaquim José da Silva Xavier, ex-militar, a quem atribuíram a alcunha de Tiradentes durante os autos do processo. Na seqüência, o corpo do homem é esquartejado e suas partes são colocadas em sal. O destino de sua cabeça será o poste de uma praça em Vila Rica, atual Ouro Preto, onde ficaria até que o tempo e as varejeiras dessem cabo dela. No entanto, a cabeça desapareceu e nunca mais foi localizada.

No dia em que tomou conhecimento de sua eleição como presidente da República pelo colégio eleitoral, Tancredo Neves disse: "Se todos quisessem, como dizia Tiradentes, poderíamos fazer do Brasil, uma grande nação". A bandeira do estado que Tancredo governara - um triângulo vermelho sobre fundo branco, ladeado pela inscrição latina Libertas quae sera tamem (liberdade, ainda que tardia) - é a mesma da nação que pretendiam instaurar Tiradentes e os Inconfidentes, caso tivessem logrado êxito no movimento. A liberdade que buscava Tancredo e tantos outros políticos, artistas, intelectuais e gente humilde do povo, era a de escolher pelo voto direto o presidente da República coisa que não se fazia no Brasil há pelo menos 24 anos. 

Tancredo viria a falecer no mesmo dia que Tiradentes foi executado, sem ter tomado posse como presidente. Mera coincidência ou mais uma das incógnitas da História? Só o tempo dirá. A liberdade para Tancredo e para Tiradentes fora tardia. Se estivesse vivo, Tancredo faria cem anos. Morrem os homens, forjam-se as lendas.

Os heróis e os mitos são muitas vezes criados para atender a interesses específicos de determinados grupos sociais. “São ícones cheios de poder, ideologia e funcionam como pontos de identificação coletiva. Atingem a alma dos cidadãos e estão a serviço da legitimação dos regimes políticos”, assinala a professora de História Aparecida Panisset. Tiradentes torna-se herói nacional, oficialmente, após a Proclamação da República. Sua imagem de barba, cabelos longos e com uma corda envolvendo o pescoço pouco tem de real, principalmente por ser costume da época raspar a cabeça e o rosto dos condenados antes da execução. A ideia, provavelmente, era aproximar a figura de Tiradentes à de Jesus Cristo, outro ícone popular.

No entanto, se há alguma semelhança entre os dois que mereça ser citada, que seja a de ambos terem sido bodes expiatórios, ou seja, carregarem a culpa por todos os demais. Tiradentes, o mais “pé-rapado” dos conjurados, foi o único sentenciado à morte, assumindo somente após o quarto interrogatório a responsabilidade de líder do movimento. Sua história faz justiça ao ditado que diz que a “corda arrebenta sempre do lado mais fraco”. No entanto, se a corda tivesse arrebentado, a história seria outra...

Comentários

Missa de sempre disse…
Tiradentes, o bode expiatório
Laura Pinca

Novos estudos históricos apresentam uma inconfidência mineira diferente daquela que nos narram os livros didáticos.

Embora a historiografia oficial considere a inconfidência mineira (1789) como uma grande luta para a libertação do Brasil, o historiador inglês Kenneth Maxwell, autor de "A devassa da devassa" (Rio de Janeiro, Terra e Paz, 2ª ed. 1978.) que esteve recentemente no Brasil, diz que "a conspiração dos mineiros era, basicamente, um movimento de oligarquias, no interesse da oligarquia, sendo o nome do povo invocado apenas como justificativa", e que objetivava, não a independência do Brasil, mas a de Minas Gerais.

Esses novos estudos apresentam um Tiradentes bem mudado: sem barba, sem liderança e sem glória. Segundo Maxwell, Joaquim José da Silva Xavier não foi senão o "bode expiatório" da conspiração. (op.cit., p. 222) "Na verdade, o alferes provavelmente nunca esteve plenamente a par dos planos e objetivos mais amplos do movimento." (p.216) O que é natural acreditar. Como um simples alferes (o equivalente a tenente, hoje) lideraria coronéis, brigadeiros, padres e desembargadores?

A Folha de S. Paulo publicou um artigo (21-04-98) no qual se comentam os estudos do historiador carioca Marcos Antônio Correa. Correa defende que Tiradentes não morreu enforcado em 21 de abril de 1792. Ele começou a suspeitar disso quando viu uma lista de presença da Assembléia Nacional francesa de 1793, onde constava a assinatura de um tal Joaquim José da Silva Xavier, cujo estudo grafotécnico permitiu concluir que se tratava da assinatura de Tiradentes. Segundo Correa, um ladrão condenado morreu no lugar de Tiradentes, em troca de ajuda financeira à sua família, oferecida pela maçonaria. Testemunhas da morte de Tiradentes se diziam surpresas, porque o executado aparentava ter menos de 45 anos. Sustenta Correa que Tiradentes teria sido salvo pelo poeta Cruz e Silva (maçom, amigo dos inconfidentes e um dos juízes da Devassa) e embarcado incógnito para Lisboa em agosto de 1792.

Isso confirma o que havia dito Martim Francisco (irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva): que não fora Tiradentes quem morrera enforcado, mas outra pessoa, e que, após o esquartejamento do cadáver, desapareceram com a cabeça, para que não se pudesse identificar o corpo.

"Se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria pelo Brasil". Como só tinha uma, talvez Tiradentes tenha preferido ficar com ela.
Missa de sempre disse…
Tiradentes, o bode expiatório
Laura Pinca

Novos estudos históricos apresentam uma inconfidência mineira diferente daquela que nos narram os livros didáticos.

Embora a historiografia oficial considere a inconfidência mineira (1789) como uma grande luta para a libertação do Brasil, o historiador inglês Kenneth Maxwell, autor de "A devassa da devassa" (Rio de Janeiro, Terra e Paz, 2ª ed. 1978.) que esteve recentemente no Brasil, diz que "a conspiração dos mineiros era, basicamente, um movimento de oligarquias, no interesse da oligarquia, sendo o nome do povo invocado apenas como justificativa", e que objetivava, não a independência do Brasil, mas a de Minas Gerais.

Esses novos estudos apresentam um Tiradentes bem mudado: sem barba, sem liderança e sem glória. Segundo Maxwell, Joaquim José da Silva Xavier não foi senão o "bode expiatório" da conspiração. (op.cit., p. 222) "Na verdade, o alferes provavelmente nunca esteve plenamente a par dos planos e objetivos mais amplos do movimento." (p.216) O que é natural acreditar. Como um simples alferes (o equivalente a tenente, hoje) lideraria coronéis, brigadeiros, padres e desembargadores?

A Folha de S. Paulo publicou um artigo (21-04-98) no qual se comentam os estudos do historiador carioca Marcos Antônio Correa. Correa defende que Tiradentes não morreu enforcado em 21 de abril de 1792. Ele começou a suspeitar disso quando viu uma lista de presença da Assembléia Nacional francesa de 1793, onde constava a assinatura de um tal Joaquim José da Silva Xavier, cujo estudo grafotécnico permitiu concluir que se tratava da assinatura de Tiradentes. Segundo Correa, um ladrão condenado morreu no lugar de Tiradentes, em troca de ajuda financeira à sua família, oferecida pela maçonaria. Testemunhas da morte de Tiradentes se diziam surpresas, porque o executado aparentava ter menos de 45 anos. Sustenta Correa que Tiradentes teria sido salvo pelo poeta Cruz e Silva (maçom, amigo dos inconfidentes e um dos juízes da Devassa) e embarcado incógnito para Lisboa em agosto de 1792.

Isso confirma o que havia dito Martim Francisco (irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva): que não fora Tiradentes quem morrera enforcado, mas outra pessoa, e que, após o esquartejamento do cadáver, desapareceram com a cabeça, para que não se pudesse identificar o corpo.

"Se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria pelo Brasil". Como só tinha uma, talvez Tiradentes tenha preferido ficar com ela.