Legislação eleitoral republicana deveria criminalizar o financiamento feito por pessoas jurídicas

Por Otaviano Helene *

"We have the best government that money can buy", Mark Twain.

A forma e os mecanismos de escolha dos ocupantes dos poderes são fundamentais para caracterizar o padrão de democracia (ou não) de um país. No nosso caso, um dos aspectos dessa questão é quanto aos mecanismos (legais e ilegais) de financiamento eleitoral. Se queremos uma nação democrática de fato, é necessário um sistema de financiamento eleitoral também democrático, como poderia ser o financiamento público. Mas para a defesa de um sistema de financiamento eleitoral democrático é necessário denunciar a atual forma de financiamento.

A legislação que regula o financiamento eleitoral no Brasil permite que pessoas físicas façam doações para campanhas eleitorais de até 10% do rendimento anual bruto. Pessoas jurídicas podem fazer doações, desde que "limitadas" a 2% do faturamento anual. Essas normas, previstas respectivamente nos artigos 23 e 81 da lei eleitoral (Lei 9504 de 1997), nada têm de democráticas.

De volta a 1824

São muitos os problemas dessas normas. O primeiro deles é o que concede poderes políticos tão maiores quanto maior for a renda, o que nos remete diretamente à Constituição do Império, de 1824: quem não tivesse cem mil réis de renda anual não poderia votar nem mesmo em eleições paroquiais; para votar em deputados e senadores havia a exigência de uma renda mínima de 200 mil réis; finalmente, só poderiam ser deputados aqueles que tivessem renda de pelo menos 400 mil réis por ano.

Esse fato, freqüentemente contado como anedota para ilustrar como era precária a "democracia" no início do Império, tem o mesmo conteúdo do que está previsto na lei eleitoral de 1997: quanto mais rico alguém for, maior é o poder político que pode exercer. Exemplo: quem ganha um salário mínimo por mês poderia (poderia, pois quem ganha 500 reais por mês evidentemente não tem capacidade de financiar coisa alguma) contribuir com alguma coisa por volta de 500 reais e, portanto, financiar não mais do que algumas dezenas de votos, já que o investimento necessário para conquistar um voto varia entre cerca de dez reais até várias dezenas de reais, dependendo do cargo e do município. Já um milionário pode financiar, com 10% de sua renda anual, milhares de votos.

Pessoa jurídica, no Brasil, é ente político

Outro problema, e ainda maior, é o financiamento de campanhas políticas por pessoa jurídica. Ora, pessoas jurídicas (lojas, fábricas, bancos, agências de publicidade, fazendas, construtoras etc.) não deveriam ser entes políticos: não podem ter ideologia, vontade ou preferência política, não podem se filiar a partidos, nem se candidatar a nada e, óbvio, não podem votar. Portanto, e evidentemente, não deveriam poder interferir em eleições, partidos ou candidaturas. Entretanto, a lei eleitoral brasileira concede poderes políticos a pessoas jurídicas.

Além disso, a doação feita por pessoa jurídica (note: o financiamento não é feito pelo dono da empresa ou por sua alta direção com dinheiro pessoal, mas por ela mesma, a empresa) é necessariamente incluída em sua planilha de custos e, portanto, transferida aos consumidores de seus produtos e serviços. Ou seja, quem decide os candidatos ou partidos a serem beneficiados são os controladores das empresas, mas quem paga a conta são os seus clientes ou fregueses.

Também os seus trabalhadores são prejudicados, pois as despesas com financiamento eleitoral entram na planilha de custos no mesmo nível que os salários, os insumos, os impostos etc. E, ao que se saiba, nenhuma empresa jamais consultou seus clientes, fregueses ou trabalhadores para saber que partidos ou candidatos financiar. Em resumo: consumidores, clientes e trabalhadores dessas empresas entram com o dinheiro e seus donos, presidentes e altos dirigentes entram com a preferência política e ideológica; nós financiamos os candidatos e partidos que interessam às elites.

Para ser coerente, a legislação eleitoral de 1997, permitindo que pessoas jurídicas financiem campanhas, deveria permitir que ocupassem cargos eletivos. Mas isso exporia os dirigentes e proprietários das empresas. Da forma que está, a lei eleitoral lhes concedeu o poder político sem o desgaste da exposição.

Empresas têm poder político quase ilimitado

Outra questão é quanto ao valor do "limite": 2% do faturamento anual. Ora, faturamentos de grandes empresas são medidos em bilhões de reais anuais. Dois por cento desses valores são algo da ordem de muitas dezenas de milhões de reais. Com esses recursos, uma grande empresa pode financiar tantas candidaturas quanto precisar!

Para se ter alguma idéia do poder eleitoral das empresas, basta ver que o faturamento das 500 maiores empresas do país corresponde a cerca de 25 bilhões de reais. Dois por cento disso é uma quantidade de dinheiro mais que suficiente para eleger tantos candidatos quantos forem necessários para defesa de seus interesses. O corolário disso é óbvio: se ou quando for necessário, aumentarão o número de candidaturas financiadas. E isso, ainda, não lhes custará nada, pois a conta será paga pela população como um todo.

Um dos efeitos dessa legislação de 1997 foi reduzir o poder da militância política nas campanhas eleitorais ao substituí-la por funcionários pagos e publicidade comercial. Outro efeito foi encarecer enormemente o custo eleitoral e transformar ocupantes de cargos eletivos em reféns dos grandes financiadores, com as conseqüências que qualquer um pode imaginar.

Um discurso que foi usado na época para defender o financiamento eleitoral por pessoas jurídicas foi que, com ele se poderia acabar com o caixa dois em campanhas eleitorais. Ora, primeiro, o grande problema não era apenas o número do caixa; era (e é) o fato que o poder econômico das empresas era (e é) utilizado nas eleições e, obviamente, para fazer valer seus interesses.

Ao permitir que as empresas financiem campanhas políticas e candidatos, os problemas, cuja origem atribuía-se ao caixa dois, continuam existindo, agora legalmente. Em segundo lugar, o caixa dois não acabou, tanto por haver despesas que não podem ser financiadas legalmente, como, por exemplo, os gastos pessoais dos candidatos ou de seus colaboradores, como pelo fato de algumas empresas e candidatos não quererem explicitar seus vínculos. Assim, a lei de 1997 criou uma situação esdrúxula: continuamos a amargar o caixa dois e temos empresas atuando como entes políticos.

Precisamos fazer com que a frase de Mark Twain seja apenas uma piada

Uma legislação eleitoral republicana deveria criminalizar o financiamento eleitoral feito por pessoas jurídicas, qualquer que fosse o número do caixa, restringindo o financiamento apenas a pessoas físicas e ao poder público.

No caso de pessoas físicas, deveria haver um limite máximo para a contribuição compatível com a renda média do brasileiro, independente da renda do doador. Apenas para ilustrar: um limite da contribuição de 2% da renda anual média do brasileiro, alguma coisa perto de 200 ou 300 reais, independente da renda individual.

Evidentemente, esse valor ainda excluiria uma grande parcela da população que, por ser pobre ou remediada, dificilmente conseguiria abrir mão de duzentos ou trezentos reais sem comprometer sua vida financeira. Entretanto, um limite igual para todos e compatível com a renda média da população pelo menos pareceria mais republicano e contribuiria para que o peso eleitoral da militância política pudesse ter alguma importância. A legislação, como é hoje, deixaria muita gente indignada em 1824.

Se queremos fazer um debate sério sobre reforma política no quesito melhoria da participação popular e, portanto, da representação, precisamos discutir mecanismos mais democráticos de financiamento. Essa tarefa passa pelo fim do financiamento por pessoas jurídicas, pelo estabelecimento de um limite republicano para o financiamento por pessoas físicas e pelo financiamento público.

Tais providências poderão tanto dar condições, se não iguais, pelo menos não tão desiguais, para as diversas correntes de pensamento político como também contribuir para reduzir o custo atual do financiamento eleitoral, que exclui de antemão inúmeras candidaturas, principalmente dos campos populares.

E é igualmente importante, e mesmo necessário, para a defesa do financiamento público, denunciar os atuais mecanismos, pois perece que a enorme maioria da população ainda não percebeu que, como está, nós financiamos os candidatos que as elites escolhem, e a altos custos.

Enfim, desde 1824 a piada de Mark Twain, no Brasil, é lei. Precisamos mudar isso.


*Otaviano Helene é professor do Instituto de Física da USP, ex-presidente da Associação dos Docentes da USP e ex-presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).

Fonte: Correio da Cidadania
.

Comentários