Dica cultural - O anjo caído

Por Cléber Sérgio de Seixas

14 de abril de 1976, 3:00 horas. Um Karmann Ghia azul atravessa o túnel Dois Irmãos, Estrada da Gávea, Rio de Janeiro. Na saída do túnel o carro, subitamente, perde o controle, vai para a direita, se choca contra a mureta e capota várias vezes. A única ocupante do veículo tem morte instantânea. Minutos depois, forte aparato policial acorre ao local. O laudo oficial aponta a sonolência da motorista como causa principal do acidente, mas testemunhas posteriormente desmentiriam tal versão, afirmando terem visto o veículo ser abalroado por outro. Este fato seria apenas mais um a rechear as estatísticas de mortos no trânsito se a vítima não fosse a estilista mais famosa que o país já tivera, uma das primeiras a dar expressão à moda brasileira no exterior. Seu nome: Zuleika Angel Jones, popularmente conhecida como Zuzu Angel. Era a queda do anjo, sua trágica descida ao abismo.

Também seria mais uma tragédia envolvendo famosos, não fossem os fatos que precederam o “acidente”. Um ano depois, Chico Buarque comporia em homenagem à estilista e amiga a canção Angélica – “quem é esta mulher que cante sempre este estribilho? / Só queria embalar meu filho que mora na escuridão do mar... / Quem é essa mulher que canta sempre este lamento? / Só queria lembrar o tormento que fez meu filho suspirar”. O filho a quem se referiu Buarque nos versos da canção era Stuart Angel Jones, militante político do MR-8, o qual fora seqüestrado, torturado e assassinado por agentes da aeronáutica na base aérea do aeroporto do Galeão, em 14 de maio de 1971. Testemunhas afirmam terem visto Stuart sendo arrastado por um jipe com o rosto quase colado ao escapamento do veículo. Seu corpo nunca foi encontrado.

Trinta anos depois, em 2006, chegava aos cinemas o filme que retrata a vida da mulher que saiu do interior de Minas, ganhou as passarelas do mundo e pagou com a vida por lutar para elucidar as circunstâncias da morte de seu filho e punir os culpados. Dirigido por Sérgio Rezende (Guerra de Canudos, Lamarca, Mauá – o Imperador e o Rei), o filme é oportuno num momento em que muitos clamam pela abertura dos arquivos da ditadura – caixas pretas que escondem toda a sordidez e truculência do regime militar – e pela instalação de uma comissão que apure todas as arbitrariedades que os algozes a serviço da ditadura cometeram em nome de uma suposta democracia.

Assim como Zuzu, várias mães ainda choram por seus filhos desaparecidos, vítimas de um regime que não admitia contestações. Estas mães querem apenas saber o porquê das prisões, torturas e mortes de seus filhos amados, a fim de dar-lhes jazigo em seus corações, já que seus corpos jamais puderam sepultar.

Enquanto dona Maria de Menezes chora por seu Jean Charles e se revolta com a impunidade dos policiais ingleses que lhe ceifaram a vida dentro do metrô londrino, muitos dos generais que aqui ordenaram o suplício de jovens nos “anos de chumbo” ainda estão por aí dizendo que nunca se torturou ou matou ninguém naqueles tempos.

Se a melhor forma de exorcizar nossos traumas e fantasmas é encará-los de frente, filmes como este cumprem bem esta função, mostrando que o Brasil daquela época não se resumia ao “milagre econômico”, e abrindo a cortina que revela, nos bastidores, o calvário dos que ousavam contestar.

Hoje em dia pode ser que alguém que atravesse o túnel da Estrada da Gávea veja um espectro de cabelos longos cruzar a pista. É que, atualmente, aquele túnel se chama Zuzu Angel.


Abaixo reproduzo um clipe composto a partir de imagens do filme.



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