O Calcanhar de Aquiles

Por Bruno P. W. Reis*

Transcorridos mais de 20 anos desde a promulgação da Constituição de 1988, é difícil evitar um diagnóstico ambivalente sobre a operação do sistema político brasileiro. De um lado, observando os meios de comunicação de massa, o sistema parece em decomposição. Por outro lado, as estatísticas sociais melhoram de modo sem precedentes e o sistema político se mostra estável como nunca. De fato, os governos têm conseguido maiorias razoáveis e as decisões (pelo menos as mais cruciais para se manter a máquina operando no curto prazo) têm podido ser tomadas. Temos sido, nas últimas décadas, poupados de impasses dramáticos, de crises políticas com desfechos institucionais imprevisíveis e do recurso à força das armas para a arbitragem de conflitos políticos. Essa é uma conquista real, a que nem sempre damos a devida atenção.

Não se trata, portanto, de amesquinhar esse feito, mas tampouco seria prudente negligenciar o mal-estar que de fato existe na opinião pública quanto ao modus operandi de nosso sistema político. Minha convicção pessoal é de que a origem dessa ambivalência reside em nossa aguda incapacidade de coibir, de modo eficaz, abusos de poder econômico em nossas campanhas eleitorais. Pior: tendo-se transformado numa autêntica fábrica de escândalos, esta vulnerabilidade pode comprometer, a longo prazo, a própria estabilidade que o sistema, bem ou mal, tem logrado alcançar até aqui.

A César o que é de César: contrariamente à percepção da opinião pública, em nenhum outro lugar há convicção tão clara e ansiedade tão grande por uma reforma quanto na Câmara dos Deputados. Num país em que quase toda a agenda legislativa decorre de iniciativa do Poder Executivo, a mesa da Câmara tem pautado reiteradamente, por iniciativa própria, a reforma política no país. Mas por que os próprios deputados quereriam melhorar os controles sobre o financiamento de campanhas? Para responder, é preciso lembrar que eleições são competições pelas quais todo político tem de passar regularmente: a falta de controle sobre as contas de campanhas inflaciona fatalmente a disputa, aumentando a imprevisibilidade de seu resultado e a incerteza quanto ao valor de uma provisão “adequada” de recursos financeiros para a próxima candidatura. No limite, embute um viés a favor daqueles que descumprem a lei e induz cada candidato a montar seu próprio “caixa 2” se quiser preservar suas chances de vitória. O preço que se paga, contudo, é expor-se ao risco de se ver envolvido no próximo escândalo...

Não é por acaso que se tem tornado mais rara no Brasil a opção por uma carreira parlamentar de longo prazo, especialmente no âmbito federal: com toda a incerteza já referida; salários frequentemente mais baixos que seus análogos estaduais; pouco poder no plenário, em virtude das prerrogativas do Executivo, da Mesa da Câmara e do Colégio de Líderes; e grandes holofotes da mídia sobre o menor desvio de conduta dos parlamentares (como no uso de passagens aéreas). Não admira que muitos dos mais valiosos quadros parlamentares do país venham optando por prefeituras no interior, secretarias de estado ou outras posições politicamente mais promissoras a médio prazo. Numa palavra, a carreira na Câmara dos Deputados não é suficientemente atraente no Brasil de hoje. Como resultado, os políticos profissionais (de quem tanto gostamos de nos queixar) tendem a ser substituídos, de fato, por aventureiros, às vezes com extensa folha corrida, interessados na imunidade parlamentar ou nas oportunidades de lavagem de dinheiro propiciadas por nossa incapacidade de fiscalização.

Lista fechada

Em 2003, uma Comissão Especial de Reforma Política funcionou ao longo de 10 meses na Câmara e cristalizou a proposta que desde então tem tramitado, voltando à baila de tempos em tempos. Relatada na Comissão de 2003 pelo deputado Ronaldo Caiado (do então PFL de Goiás), acabou conhecida genericamente como “proposta Caiado”. Ela se apoia sobre dois pilares: financiamento exclusivamente público das campanhas e adoção de “lista fechada” na eleições proporcionais. Por esse sistema, o preenchimento das vagas que o partido ou coligação conquista nas urnas é feito segundo uma ordem pré-estabelecida em convenção partidária. Pela justificação que acompanhou o projeto de lei original, seu propósito precípuo foi a melhoria dos controles sobre o financiamento das campanhas. Para tanto, propunha o financiamento público exclusivo e, para viabilizá-lo, as listas fechadas.

Em qualquer tempo e lugar, reformas eleitorais são penosas, já que se solicita aos vencedores da última eleição que aprovem mudanças na regra que os elegeu da última vez. E, se é difícil que concordem sobre a necessidade de mudar, mais difícil ainda é concordarem sobre onde mudar, já que diferentes regras favorecerão diferentes atores. No caso brasileiro, o grande produtor de maiorias costuma ser o Executivo federal. Só que ele tende a não intervir com energia quando a matéria é reforma política – já que ela, fatalmente, dividirá sua base. Eis o círculo vicioso de nosso impasse atual.

Cientes dessas dificuldades, os membros da comissão de 2003 evitaram propor qualquer emenda constitucional, para não dificultar ainda mais a aprovação da reforma. Mas desde então os simpatizantes da proposta não têm sido capazes contrapor-se ao fato de que o projeto expõe-se, muito facilmente, à difamação, ao fixar a prerrogativa de ordenar as listas nas mãos das convenções partidárias e assegurar um fluxo automático de recursos públicos para os partidos. Para contrapor-se ao senso comum, a mesa da Câmara teria de exprimir com muito mais clareza e ênfase a vinculação da proposta com o descontrole sobre o financiamento das campanhas. Como tem falhado em fazê-lo, a proposta tem permanecido desacreditada.

De minha parte, acredito que a proposta atirou no que viu e acertou no que não viu: embora eu faça restrições ao financiamento público exclusivo, acredito que a adoção de listas fechadas mereceria uma experimentação. Os proponentes da reforma sustentam de maneira plausível que as listas favoreceriam a fiscalização das contas das campanhas. Tendo a concordar, mas acredito também que elas tenderão a produzir o efeito de uma politização relativa das campanhas proporcionais. Não pela fantasia de tornar os partidos mais “ideológicos” e menos “fisiológicos”. Mas simplesmente por forçá-los a sair em público coletivamente, formalmente, e se posicionar politicamente em busca de votos. Tirá-los do refúgio onde se escondem reduzidos a cartórios provinciais, com existência real apenas nos bastidores, e trazê-los para a luta política, no corpo a corpo junto ao público. O risco da chamada “oligarquização” é uma fantasia, pois a competição por posições nas cúpulas partidárias vai se acirrar.

Seguramente, é necessário mexer também na legislação sobre financiamento de campanhas. Mas o financiamento público exclusivo não é a solução. É bem-vindo, claro, todo esforço de se isolar o sistema político de influências enviesadas provenientes das desigualdades econômicas. E isso poderia até justificar o financiamento exclusivamente público das campanhas. É preciso levar em conta, porém, o risco grave de esclerosamento dos canais de representação a partir de seu exercício rotineiro, décadas a fio, por organizações dadas (os partidos “estabelecidos”), destinatárias legais de recursos públicos, independentemente – em boa medida – dos humores do eleitorado. Cabe dotarmo-nos de salvaguardas contra uma eternização burocrática dos partidos. E isso se torna ainda mais grave se o financiamento público opera paralelamente ao voto obrigatório – como seria o caso no Brasil. Esta conjunção dispensaria os partidos do esforço tanto de arrecadação de fundos quanto de indução ao comparecimento do eleitor, transformando-os em entidades excessivamente independentes de eventuais oscilações na atmosfera política para a manutenção de suas atividades. O sistema partidário se veria insulado em relação ao clima político, desprovido de sinais de insatisfação que de outra forma poderiam se manifestar na forma de queda nas doações ou baixo comparecimento eleitoral.

O voto obrigatório tem o mérito importante de evitar a elitização do sufrágio que o voto facultativo sempre traz consigo – e que provavelmente seria dramática num país como o Brasil. Isso já seria motivo suficiente, portanto, para que o financiamento público exclusivo fosse descartado. Mas é impossível avaliar o que está em jogo aqui sem levar em conta também o precedente de Barack Obama. Com uma reorganização drástica dos modos habituais de arrecadação de fundos, Obama não apenas ganhou a Casa Branca, como – pelo menos por uma vez – deslocou o centro de gravidade financeiro das campanhas eleitorais. Até 2008, financiamento privado significava, necessariamente, cortejar o big money. Por mais que as condições então prevalecentes não venham a se repetir com frequência, o caso de Obama mostrou como uma candidatura pode não apenas manter-se competitiva, mas arrecadar muito mais que os rivais, de forma descentralizada, pela internet, utilizando também pequenas doações, em larguíssima escala. Seria ultrajante se viéssemos fechar a porta a doações privadas justamente agora, quando uma desconcentração da influência financeira sobre as campanhas torna-se pelo menos tecnologicamente possível.

Sistema misto

Hoje, me inclinaria por algum sistema misto de financiamento que estipulasse limites estritos (e baixos) para o valor nominal máximo das contribuições privadas permitidas (e apenas por pessoas físicas), a serem conjugados com um financiamento público partidário. As doações deveriam ser feitas apenas pelo meio que o TSE e a Receita Federal apontassem como o mais seguro contra fraudes e vazamentos (a internet, imagino), com declaração de fontes e prestação de contas disponíveis em “tempo real”.

Um repertório de medidas como essas, voltadas para robustecer os controles sobre os fluxos financeiros em torno das campanhas, é claramente preferível ao disciplinamento dos gastos admissíveis em que temos incorrido nos últimos anos. Nossos tribunais têm-se esmerado numa interpretação excessivamente literal do problema da “compra de votos”, proibindo um sem-número de brindes ou materiais de campanha relativamente inócuos (e baratos), tais como canetas, chaveiros ou camisetas. Mas a compra espúria de votos mais relevante se dá não nesse varejo, e sim no atacado, nos orçamentos milionários acobertados em contabilidades paralelas que escapam quase sempre ao controle das autoridades competentes, enviesando a disputa em favor dos plutocratas e dos criminosos.

Desde 2003, quando propuseram a adoção de listas fechadas para viabilizar o financiamento público exclusivo, nossos deputados nos fazem uma pergunta, sobre as relações esperáveis entre esquemas de financiamento de campanhas e o sistema eleitoral. Infelizmente, sabemos pouco sobre isso – o que já é suficientemente mau. Mas ainda pior é constatar que ninguém pareceu dar-se conta de que o problema foi posto. Pois estamos habituados a não tomar a sério o Congresso Nacional. A não respeitar a Câmara dos Deputados. E presumimos com perfeita naturalidade que tudo não passa de um conluio entre bandidos, determinados a enganar o eleitor.

Não admira que a matéria não prospere. Sequer seu debate prospera. Quando o projeto de 2003 foi derrotado no plenário, em maio de 2007, a cobertura foi mínima, pois os jornais estavam ocupados com a pauta policial das reinações de Renan Calheiros e sua ex-amante. Em vez de dar a devida atenção à discussão das causas de nossos males, deixamo-nos tolamente absorver – mais uma vez – pela última fofoca em torno de um de seus sintomas. Enquanto isso, criminosos continuam a lavar dinheiro em campanhas eleitorais. Um know-how sobre “como se eleger deputado sem ter que se preocupar com política” está se consolidando no mercado dos bastidores das campanhas e a renovação parlamentar, sempre ingenuamente saudada, tem frequentemente substituído parlamentares tarimbados por novatos endinheirados. Enquanto perseverar esse cenário, empenharmo-nos em campanhas como a “ficha limpa” ou juntar-se ao clamor pela cassação de cada caso porventura detectado de corrupção eleitoral é como enxugar gelo: nem que se cassassem todos os 513 deputados teríamos mudança significativa no quadro, já que sobre seus suplentes pesariam as mesmas restrições, a mesma indução ao “caixa 2”; logo, as mesmas suspeitas. A única diferença certa é que esses suplentes terão tido menos votos que seus titulares.


*Bruno Reis é professor de ciência política na UFMG, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e diretor acadêmico da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP).

Fonte: jornal Estado de Minas - 10 de abril de 2010

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