Memória, verdade e justiça: a experiência argentina - última parte



Por Eduardo Luiz Duhalde *

O DIREITO À VERDADE

Essa idéia se expressa também na consagração do Direito à Verdade. O direito ao conhecimento da verdade acerca do cometimento de crimes aberrantes vale tanto para o nefasto capítulo do passado quanto como obrigação diante do presente e do futuro. Para isso tem-se de manter em vigília as consciências éticas e moral e sua sanção jurídica.

A respeito disso, cabe recordar que, no campo do direito internacional dos Direitos Humanos, há muito tempo começou a desenvolver-se o chamado
Direito à Verdade”, para o qual foi marco importante o pronunciamento da Corte Internacional de Direitos Humanos em um caso de desaparição forçada de pessoas. Naquele caso, a Corte sustentou que “O dever de investigar fatos desse gênero subsiste enquanto se mantenha a incerteza sobre o destino final da pessoa desaparecida. Na hipótese de que circunstâncias legítimas da ordem jurídica interna não tenham permitido a aplicação das sanções correspondentes a quem seja individualmente responsável pelos delitos dessa natureza, o direito dos familiares da vítima de reconhecer qual foi seu destino e onde se encontram os restos mortais representa justa expectativa, que o Estado deve satisfazer com os meios ao seu alcance” (Corte Internacional dos Direitos Humanos, caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988).
Em consonância com tal interpretação afirmou-se também que:
Existe uma expectativa não-individual do direito à verdade, que se assenta no direito de a comunidade conhecer seu passado... É o direito da sociedade de conhecer suas instituições, seus atores, os fatos acontecidos, para poder saber, por meio do conhecimento de seus acertos ou de suas falhas, qual é o caminho a seguir para consolidar a democracia”.
Tais conceitos foram recepcionados também pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao assinalar que o direito de saber a verdade sobre os fatos, assim como a identidade de quem deles participou, constitui obrigação do Estado  para com os familiares das vítimas e a sociedade, como conseqüência das obrigações de deveres por ele assumidos como Estado-Parte da Convenção.

Tanto o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (proposta da Argentina apoiada por 54 países) como a Assembleia da OEA reconheceram em resoluções importantes a relevância de respeitar e garantir o direito à verdade para o fim da impunidade, promover e proteger os Direitos Humanos.

Foi bem recebida a criação, em vários Estados, de mecanismos judiciais específicos, assim como outros, judiciais ad hoc, que complementam o sistema judicial de investigação das violações dos Direitos Humanos e do direito internacional humanitário e sevem de base para a preparação dos informes e das decisões desses órgãos.

Os militares responsáveis pela aplicação do terrorismo de Estado seguem negando-se a revelar a verdade: persistem ocultando a lista de pessoas assassinadas, o destino das crianças apropriadas, os responsáveis de cada crime e o destino dos corpos.

JUSTIÇA

De maneira geral, pode-se sustentar que o direito de acesso à Justiça consiste na possibilidade que tem toda pessoa, independentemente de sua condição econômica, social ou de qualquer outra natureza, de recorrer aos tribunais para formular pretensões ou para defender-se, e de obter o pronunciamento, o cumprimento e a execução de uma sentença desses tribunais.

A Justiça como tal foi negada às vítimas do terror estatal, ao amparo das leis de Obediência Devida e do Ponto Final, assim como dos indultos. Os processos judiciais foram arquivados e os responsáveis não foram julgados, por falta de provas.

O caminho de reconstrução do direito à Justiça levou à substituição da vergonhosa Corte Suprema de Justiça do menemismo, mediante uma avaliação política da composição de seus membros e sua substituição por prestigiosos juristas independentes. O segundo passo foi a ratificação da Convenção sobre imprescritibilidade dos delitos de lesa-humanidade. O terceiro passo foi a declaração de inconstitucionalidade das leis de Obediência Devida e Ponto Final, assim como dos Indultos.

A seu lado, o governo nacional começou a apresentar-se como pólo ativo nas ações judiciais, impulsionando a reabertura dos processos, sempre observando todas as garantias do devido processo legal. Hoje o resultado está à vista: cinqüenta e seis responsáveis importantes pela prática de crimes de lesa-humanidade já foram condenados, contando-se desde o processo das juntas militares; 182 estão sendo processados e outros 130 o serão nos próximos anos. Há 289 causas abertas contra repressores, nas quais 556 pessoas são processadas, em todo o país, por violações aos Direitos Humanos cometidas durante a última ditadura militar.

O mais importante, entretanto, não é essa estatística, mas esse processo inédito, no qual a Justiça de um país, em nome dos direitos fundamentais e dos princípios democráticos, julga e condena os responsáveis de uma época marcada pelo horror sistemático, sem que, ao fazê-lo, coloque em perigo as instituições da República, mas pelo contrário, as fortaleça.


* Eduardo Luis Duhalde é advogado, historiador, jornalista e secretário de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Segurança e Direitos Humanos da Argentina

Fonte: Revista Direitos Humanos - nº 4 - dezembro 2009

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