O mau uso da religiosidade popular

Por Leonardo Boff

A religiosidade popular está hoje em alta pois foi um dos eixos fundamentais da campanha eleitoral, especialmente em sua vertente fundamenalista. Foi induzida pela oposição e por uma ala conservadora de bispos de São Paulo, à revelia da CNBB, acolitada depois por pastores evangélicos. Sem projeto político alternativo, Serra descobriu que podia chegar ao povo, apelando para temas emocionais que afetam à sensível alma popular, como o aborto e a união civil de homosexuais, temas que exigem ampla discussão na sociedade, fora da corrida eleitoral. Política feita nesta base é sempre ruim porque faz esquecer o principal: o Brasil e seu povo, além de suscitar ódios e difamações que vão contra a natureza da própria religião e que não pertence à tradição brasileira.

Historicamente a religiosidade popular sofreu todo tipo de interpretação: como forma decadente do cristianismo oficial; os filhos da primeira ilustração (Voltaire e outros) a viam como reminiscência anacrônica de uma visão mágica do mundo; os filhos da segunda ilustração (Marx e companhia) a consideravam como falsa consciência, ópio endormecedor e grito ineficaz do oprimido; neodarwinistas como Dawkins a leem como um mal para a humanidade a ser extirpado.

Estas leituras são canhestras pois não fazem jutiça ao fenômeno religioso em si mesmo. O correto é tomar a religiosidade por aquilo que ela é: como vivência concreta da religião na sua expressão popular. Toda religião significa a roupagem sócio-cultural de uma fé, de um encontro com Deus. No interior da religião se articulam os grandes temas que movem as buscas humanas: que sentido tem a vida, a dor, a morte e o que podemos esperar depois desta cansada existência. Fala do destino das pessoas que depende dos comportamentos vividos neste mundo. Seu objetivo é evocar, alimentar e animar a chama sagrada do espírito que arde dentro das pessoas através do amor, da compaixão, do perdão e da escuta do grito do oprimido. E não deixa de fora a questão do sentido terminal do universo. Portanto, não é pouca coisa que está em jogo com a religião e a religiosidade. Ela existe em razão destas dimensões. Um uso que não respeite esta sua natureza, significa manipulação desrespeitosa e secularista, como ocorreu nas atuais eleições.

Não obstante tudo isso, importa tomar em conta as instituções religiosas que possuem poder e um peso social que desborda do campo religioso. Este peso pode ser instrumentalizado em diferentes direções: para evitar a discussão de temas fortes como a injustiça social e a necessidade de políticas públicas orientadas para quem mais precisa e outros temas relevantes.

É nesse campo que se verifica a disputa pela força do capital religioso. E ela ocorreu de forma feroz nestas eleições. Curiosamente o candidato da oposição, se transformou num pastor ao fazer publicar num jornal que eu vi:”Jesus é verdade e justiça”, com a assinatura de próprio punho, como se não nos bastassem os evangelistas para nos garantirem esta verdade. O sentido é insinuar que Jesus está do lado do candidato, enquanto o outro é satanizado e feito vítima de ódio e rejeição. Eis uma forma sutil de manipulação religiosa.

Um católico fervoroso me escreveu que queria “me retalhar em mil pedaços, queimá-los, jogá-los no fundo do poço e enviar a minha alma para os quintos dos infernos”. Tudo isso em nome daquele que mandou que amássemos até os inimigos. O povo brasileiro não pensa assim porque é tolerante e respeitador das diferenças e porque crê que no caminho para Deus podemos sempre somar e nos dar as mãos.

Só não desnatura a religiosidade aquela prática que potencia a capacidade de amor, que nos ajuda na auto-contenção da dimensão de sombras, nos desperta para os melhores caminhos que realizam a justiça para todos, garante os direitos dos pobres e nos torna não apenas mais religiosos, mas fundamentalmente mais humanos. A quem ajuda a difamação e a mentira? Deus as abomina.

Fonte: site da Revista Fórum

Comentários

Wenyx disse…
Prezado Boff,

Admiro sua visão acerca da espiritualidade. Se bem entendi, o sr. distingue religião da espiritualidade. Assim, temos a espiritualidade como algo natural e a religião como instituição (cultural, social, etc). As propriedades da natureza do espírito advem de uma física onde matéria e espírito são uma só coisa. Temos as propriedades espirituais quando aplicamos uma aceleração infinita entre um ponto A e um ponto B. O tempo de deslocamento é igual a zero eliminando assim o tempo-espaço. Sem o tempo-espaço temos a eternidade e a infinitude numa unidade indistinta de tudo, o quê, pode ser entendido como propriedade do espírito.