Serra, no Estadão: Fumaça e espelhos

Existe, especialmente em alguns círculos da classe média brasileira, a crença de que os dois mandatos do presidente Lula foram um “acidente de percurso”. Não, não expressaram o desejo de mudança, nem de inclusão social de milhões de brasileiros.

Lula, por certo, teria sido um sinal de “amadurecimento” da democracia brasileira. Mas bastava que fosse isso: um símbolo. Em breve o operário analfabeto e incapaz seria desmascarado pelos fatos, o que resultaria na restauração ao poder dos sábios frequentadores do entorno de Fernando Henrique Cardoso. Não foi bem isso o que se deu, mas a lenda urbana segundo a qual Lula foi “presidente por acaso” e nada acrescentou ao cargo ou ao Brasil persiste, mais forte que nunca.

Essa teoria ganhou novos contornos, mas em minha opinião expressa o profundo preconceito de classe que subsiste na sociedade brasileira. É uma rejeição quase epidérmica de uma certa elite a qualquer coisa que cheire a “popular”.

Como explicar o sucesso de Lula? Quando as explicações anteriores deixaram de ser plausíveis, ele passou a ser considerado “sortudo”, como se as circunstâncias econômicas internacionais tivessem conspirado em favor de seu governo.

Eu entendo perfeitamente o dilema do governador José Serra. Como candidato da oposição, ele precisa convencer o eleitorado de que chegou a hora de mudar. Mas não muito, para não espantar os 80% que aprovam o governo Lula. Isso vai obrigá-lo ao contorcionismo verbal que se viu no recente artigo de Serra em defesa da democracia publicado no Estadão, que está aqui.

Ora, defender a democracia é louvável, especialmente quando alguém ameaça a democracia. Não me consta, no entanto, que a ministra Dilma Rousseff represente uma ameaça à democracia. A não ser que alguém pretenda pintá-la assim, durante a campanha eleitoral.

Mais que isso, no entanto, o artigo de Serra é revelador de que ele endossa plenamente a teoria tão cara a alguns setores da classe média de que Lula é um erro que dura oito anos e que só não foi pior por ter mantido a orientação econômica do governo FHC.

O governador não escreve isso. Mas ele enxerga no advento do Plano Real uma espécie de refundação do Brasil e trata de desconhecer as profundas mudanças que Lula representou, inclusive e especialmente em relação ao governo anterior, nas políticas sociais, na economia, na recuperação do estado brasileiro, na política externa.

A certa altura, Serra escreve:

“O crescimento, o desenvolvimento e o bem-estar não são manifestações divinas. Não estão garantidos por alguma ordem superior, a que estamos necessariamente destinados. Existem em função das escolhas que fazemos.

Eu não sei de alguém que acredite que crescimento, desenvolvimento e bem-estar sejam manifestações divinas. Sim, concordo que eles existem “em função das escolhas que fazemos”.

Não seria razoável especular, portanto, que o crescimento, o desenvolvimento e o bem-estar de anos recentes no Brasil pode ter relação com a decisão dos eleitores, que elegeram e reelegeram Lula?

Fazer isso seria intelectualmente honesto, mas não estamos falando de honestidade intelectual: o governador Serra escreveu um artigo para se apresentar como guardião da democracia, sem nomear quem são os inimigos dela. Estimula a criação de fantasmas, para depois se apresentar como o espantalho deles (juro que a imagem me veio sem querer).

Como notei em outro artigo, Serra pretende pairar sobre os acontecimentos: o trabalho sujo será terceirizado. A ele caberá “parecer estadista”, “razoável”, um homem de bom senso em meio ao tiroteio partidarizado.

Lá pelas tantas, escreve Serra:

“Assim, repudiemos a simples sugestão de que menos democracia pode, em certo sentido, implicar mais justiça social. Trata-se apenas de uma fantasia de espíritos totalitários.”

Quem é que sugere fazer justiça social com menos democracia? Será que o governador José Serra poderia ser mais explícito?

Mas o artigo não esclarece e me parece que o propósito nunca foi o de esclarecer. Falar em “fantasia de espíritos totalitários” soa bem. E casa perfeitamente com o espírito dessa classe média eleitoralmente minoritária que se acredita sob ataque de espíritos malignos.

Em outras palavras, Serra endossou a campanha da fumaça e dos espelhos. É confundir para confundir.

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