CAFETÕES DO MERCADO


Por Gustavo Fonseca

O advento da globalização, fenômeno que se intensificou exponencialmente com o fim da guerra fria, trouxe consigo avanços sem precedentes à expansão econômica e ao comércio internacional. Com o desenvolvimento tecnológico que o acompanhou, facilitando a comunicação e os negócios mundialmente, as fronteiras entre os Estados nacionais se enfraqueceram significativamente, assim como o próprio papel político-administrativo deles.

Uma das consequências mais sérias desse novo cenário global, ainda que pouco comentada, é a disseminação de práticas criminosas na produção e mercantilização de bens a serem consumidos nos cinco continentes. O tema é abordado em Economia bandida: a nova realidade do capitalismo, da jornalista e economista italiana Loretta Napoleoni, estudiosa dos meios de financiamento do terrorismo que se destacou com o livro Terror inC: Tracing The Money Behind Global Terrorism.

Segundo Napoleoni, com a queda do muro de Berlim e o colapso da antiga União Soviética, a democracia se espalhou por quase todo o planeta e, assim, boa parte da opinião pública das potências ocidentais tem a impressão de vivermos num mundo menos injusto e obscuro do que há algumas décadas. Trata-se, para a pesquisadora, de um grande equívoco.

De acordo com Napoleoni, quase todos os produtos que consumimos têm um rastro oculto de trabalho escravo e pirataria, de falsificação e fraude, de roubo e lavagem de dinheiro. Tais segredos econômicos, sobre os quais pouco sabemos, nos levam a ser, conforme a autora, prisioneiros de uma densa rede de ilusões comerciais, o que ela denomina de a matrix do mercado, resultado da economia bandida.

Atualmente, as classes médias e as elites têm uma qualidade de vida inimaginável há duas ou três gerações, graças sobretudo aos avanços científicos, tecnológicos e econômicos. Dessa forma, como no filme Matrix, os consumidores, particularmente dos países desenvolvidos, desfrutam de um dia a dia fantasioso, sob o qual uma rede comercial nefasta se estende. Isso porque a matrix do mercado alia um rápido crescimento econômico, fruto em boa medida de crimes e ilegalidades, a Estados-nação cada vez mais enfraquecidos.

Nesse cenário, “prateleiras dos supermercados do Ocidente estão cheias de mercadorias produzidas nos países em desenvolvimento por pessoas que ganham uma minúscula fração do seu valor”. Assim, “se os consumidores se dessem ao trabalho de pensar sobre a questão, ficariam pasmos de saber quem embolsa a maior parte dos lucros que suas compras diárias nos supermercados ajudam a realizar”.

Segundo dados de Napoleoni, um terço de todo o peixe consumido no Reino Unido é ilegalmente pescado no Mar Báltico e no Mar do Norte. Esse negócio pertence hoje à máfia russa, que extrai cerca de 100 mil toneladas de bacalhau a mais do que a cota anual estabelecida, de 480 mil toneladas. O produto da pilhagem é desembarcado em alto-mar em navios sob bandeiras de conveniência e, de acordo com autoridades navais norueguesas, por meio dele muitos milhões de libras do lucro sujo da máfia russa são lavados.

Outro exemplo da economia bandida é a falsificação de mercadorias, inclusive medicamentos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), citada por Napoleoni, uma de cada 10 pílulas vendidas é pirata. Além disso, conforme dados de 2005 coletados por Robert Cockburn e citados no livro, o comércio de remédios adulterados gera anualmente US$ 32 bilhões e mata cerca de um milhão de pessoas.

Escravidão moderna Mais sórdida ainda que a pirataria é a exploração de mão de obra escrava ou semiescrava. Calcula-se que haja em pleno século 21 cerca de 27 milhões de pessoas em regime de escravidão, prática que de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) gera lucros de mais de US$ 30 bilhões por ano. Ainda que quase sempre associada aos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como na extração de ouro no Congo Oriental e em Uganda por crianças raptadas e escravizadas, ou no mercado trabalhista sem leis da China, essa barbárie está presente nas maiores potências mundiais. Caso dos Estados Unidos, onde levas de latino-americanos, sobretudo mexicanos, são submetidas a condições desumanas de trabalho, com salários irrisórios. Não surpreendentemente, noticiou-se há poucos dias que a Apple, com fábricas na China, Taiwan, Cingapura, Filipinas, Malásia, República Tcheca e EUA, empregava jovens de 15 anos em três de suas unidades.

A exploração humana, como sempre acontece ao longo da história, também é motivada por fins sexuais. Conforme Napoleoni, com o desmantelamento do bloco comunista do Leste europeu, por exemplo, milhares de mulheres passaram a se prostituir como meio de sobreviver, não raras vezes sob o jugo de cafetões que enriqueceram à custa delas. Nesse âmbito, particularmente interessante é o tráfico de prostitutas e escravas sexuais eslavas levadas para Israel pela Faixa de Gaza, geralmente com a colaboração de criminosos egípcios e palestinos. As rotas utilizadas para contrabandeá-las são as mesmas usas por terroristas e traficantes de drogas. O mais curioso neste cenário é o fato de a demanda israelense ser alta entre os haredim, judeus ortodoxos e extremamente conservadores.

Estendendo-se às novas tecnologias, a economia bandida fez da rede mundial de computadores o novo eldorado da criminalidade. Conforme estudos da Internet Pornography Statistics, a pornografia on-line teve em 2005 uma receita de US$ 57 bilhões. Somente a pornografia infantil virtual gera anualmente US$ 3 bilhões. Outra face desse submundo é a disseminação de jogos de azar virtuais, altamente lucrativos e difíceis de fiscalizar. Com suas peculiaridades, “a internet é a mais bem-sucedida das colônias da economia bandida por ser o terreno onde as inovações tecnológicas introduzidas pelos foras da lei da globalização – como pop-ups e streaming videos – foram aperfeiçoadas e aplicadas a negócios legítimos, e também por ser um ambiente sem lei onde a contaminação bandida se alastra rapidamente. O ciberespaço nos proporciona, portanto, uma prévia do impacto que a desconstrução progressiva da política moderna terá em nossas vidas cotidianas”.

Assim, o cenário que se descortina sob a matrix do mercado é tenebroso. No entanto, como informa a própria Loretta Napoleoni, Economia bandida não é um “manual antiglobalização ou um manifesto pela revolução do consumidor. O objetivo do livro, segundo a autora, é levar ao leitor o conhecimento sobre o mundo em que vivemos, no qual forças econômicas à revelia do poder político ou mesmo com seu apoio degradam expressiva parcela da humanidade. Uma variável negligenciada pelos economistas e gurus do capitalismo em suas complexas análises, quase sempre baseadas apenas em estatísticas frias como o cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) e da expansão comercial.


. ECONOMIA BANDIDA: A NOVA REALIDADE DO CAPITALISMO
. Loretta Napoleoni
. Editora Difel, 350 páginas


Fonte: Jornal Estado de Minas - 07/03/2010

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