Templo do consumo


Por Cléber Sérgio de Seixas

Certo dia, diante do causticante calor e da ameaça de chuva, procurei abrigo num desses lugares que as pessoas costumam chamar de templos do consumo. Ao adentrar naquele oásis iluminado fui aliviado do calor pela deliciosa brisa soprada por uma gigantesca abertura de ar condicionado posicionada no teto, junto à entrada. Fiquei ali por alguns minutos refrescando-me. Ao olhar para trás pude perceber a diferença do mundo além daquela porta que eu acabara de cruzar – mundo conturbado, com pessoas transitando apressadas, desconfiadas e preocupadas com suas bolsas e bolsos – com o mundo belo, fresco, seguro e limpo no qual eu adentrara. Ali dentro as pessoas haveriam de ter descanso e segurança, pelo menos no que dependesse dos guardiões de terno escuro junto à porta, que me lembraram anjos guardando a entrada do paraíso, e que portavam, no lugar de espadas flamejantes, modernos walkie-talkies. Notei a diferença gritante entre aquele lugar e o que ficara após as portas que se abriam e fechavam em resposta à aproximação dos passantes.

Olhei em derredor e vi linhas arquitetônicas que me lembraram catedrais, porém não consegui especificar somente um estilo arquitetônico, pois naquele lugar poder-se-ia atestar a convivência de várias tendências. Nessa profusão de estilos, notei que o sincretismo era imposto pelo pragmatismo inerente ao local, pois cada um atraía o seu público com a decoração que mais lhe conviesse.

Com as pernas em frangalhos, corri os olhos em busca de lugares para assentar, mas notei que naquela gigantesca catedral quase não havia cadeiras. Mas se a palavra catedral guarda semelhanças etimológicas com cadeira (do latim catedra), onde estão os assentos? Aos poucos entendi o porquê de haver poucos assentos: as pessoas deveriam transitar pelos corredores graníticos a fim de contemplarem através do vidro translúcido as sacrossantas mercadorias e serem abordadas por sacerdotisas belíssimas ou por sacerdotes de cabelos lustrosos. Aliás, notei que a maioria ali se apresentava mais bem vestida e mais bem aparentada. Era como se uma mensagem subliminar dissesse que toda feiúra, pobreza, sujeira e mal-vestir deveriam ficar além das portas deslizantes daquela fortaleza climatizada, e que naquele lugar, feios, gordos e pobres só poluem a paisagem.

As pessoas adentravam no majestoso templo vestindo seus melhores trajes, como quem reserva à missa de domingo o melhor que possui no guarda-roupa, em outras palavras, sua “roupa de ver Deus”. Não avistei maltrapilhos nem gente de pés no chão, apesar de saber que muitos ali não eram gente de posse ou bem nascida.

Alguns passos depois, olhei para o alto e lá estava uma abóbada vitrificada a clarear o pátio central, mas no vítreo céu não encontrei anjos, nuvens ou estrelas, vi apenas um cartaz que cruzava diametralmente por baixo daquela cúpula, anunciando ofertas de uma loja de departamentos.

Concluí então que o lugar era de fato um templo, mas de um tipo onde as divindades assumiam formas variadas conforme o gosto e condição financeira de cada fiel. Era um reduto de objetos veneráveis cuja posse conferiria aos portadores a oportunidade de serem contados no rol dos possuidores de bens. Assim, para um, o belo e caro vestido traria consigo a garantia de chamar a atenção alheia, enquanto para outro, aquele sofisticado TV de plasma dependurado na parede da sala seria a garantia de status ao receber os amigos em casa para assistir a um bom filme ou partida de futebol, mesmo que no quarto não houvesse cama para todos ou a despensa se encontrasse desguarnecida.

As divindades também respondiam pelo nome de mercadorias. Fiquei confuso e não consegui absorver bem o conceito de mercadoria. O que é mercadoria afinal? Aquilo que está além da vitrine ou quem está a observar? Recordei a célebre frase de Marx: “O consumo consome o consumidor”. Nesse palácio iluminado e estupendamente decorado, as pessoas de fato consomem e são consumidas pelo consumismo.

Triste, recordei de quando se gozava o lazer andando pelas praças e parques públicos e, para tal, não necessariamente tinha que se ter dinheiro no bolso. Era um tempo em que lazer não era sinônimo de consumo. Ali, naquele lugar, porém, o único objetivo era gastar, senão não faria sentido transitar por aqueles iluminados corredores. Obedecendo a essa premissa, de parque de diversões a cinemas, tudo está sendo deslocado para dentro dessas fortalezas modernas. Nem os restaurantes escaparam da triste sina, pois passaram de lugares onde se pode comer um bom repasto, relaxar e bater um papo, a ruidosas praças de alimentação, nada intimistas, confortáveis ou silenciosas.

“Consumo, logo existo“, me veio também à cabeça, numa paródia a Descartes. Quem não tem dinheiro não existe nesse templo feito em honra a Mamon. Todos são iguais perante esse deus - negros, brancos, fidalgos ou plebeus - desde que tenham proventos suficientes. As diferenças caem por terra quando se registra o débito no cartão ou quando se saca do bolso o papel moeda. O sentimento é de se estar no céu, mas se trata de um céu despovoado de anjos e repleto de coisas supérfluas. O portador passa a acreditar que a posse do objeto adquirido o transporta para o mundo dos socialmente valorizados. Assim, parafraseando o velho Marx novamente, não apenas se outorga um objeto ao sujeito, mas também um sujeito ao objeto. Nessa relação fetichista, a posse do produto confere status a seu possuidor, fazendo-o crer que ter vale mais do que ser.

Aquele lugar bem que poderia ser algum tipo de mercado – ‘Mercado’ bem que poderia ser o nome do deus que domina o panteão consumista -, mas no mercado em sua versão mais prosaica encontramos geralmente coisas das quais realmente precisamos, itens necessários à nossa subsistência que costumamos chamar de gêneros de primeira necessidade. O que vi naquele gigantesco centro de compras, no entanto, foi toda sorte de bibelôs e souvenirs pouco necessários. Caminhei diante deles, contemplei-os em suas câmaras iluminadas mas nenhum deles me seduziu ou entusiasmou.

Avistei uma peça de vestuário que me pareceu familiar. Devo tê-la visto em outra loja fora daquele suntuoso lugar, mas ali a roupa me pareceu mais bonita, mais fashion. Porém bastou um exame mais minucioso para concluir que a miragem era produzida pela iluminação indireta, pelo brilho do piso, pelo luxo da vitrina enfeitada e pelos funcionários bem-apessoados. Era a mesma peça, mas, envolta pela aura do ambiente, aparentava ser mais nobre do que realmente era, de forma que o preço mais elevado se justificasse.

Enfadado de tudo aquilo, resolvi abandonar a fortaleza. Digo fortaleza, pois me lembro daqueles castelos medievais que foram construídos para abrigar os nobres em tempos de guerra e, em tempos de paz, para separá-los e diferenciá-los da sujeira e pobreza da plebe. De fato, hoje estamos em guerra civil não declarada, conflito cujo front é composto, de um lado, por aqueles que consomem e, de outro, por aqueles que não consomem, mas sonham em consumir. Os shoppings centers cumprem bem a função de fortalezas, garantindo àqueles que possuem recursos a proteção do tenebroso mundo exterior, onde todos são alvos potenciais da pobreza e da violência. Enquanto deixava o local avistei uma criança maltrapilha ser retirada do shopping pelos seguranças, ao mesmo tempo em que uma jovem e seu cãozinho poodle caminhavam sem ser importunados.

Avistei novamente a porta, que se abriu automaticamente ante a minha aproximação. Cruzei-a e percebi que já anoitecia, o calor aumentara e, do céu carregado, a chuva caia torrencialmente. Poucos metros depois as mãos sujas de um pedinte se estenderam a mim na esperança de que eu as preenchesse com algumas moedas de pouco valor. Não entendi as palavras balbuciadas, mas aliviei minha consciência depositando alguns centavos naquelas mãos. Este é o mundo real, a dura realidade que supera a ficção do shopping center.

As pessoas ainda caminhavam apressadamente, desconfiadas umas das outras, protegendo seus pertences, ansiosas para chegar em suas casas a fim de se protegerem da chuva e do caos reinante na rua. Mas este caos é a regra, não a exceção. Aquele Shangri-La consumista do qual eu saíra era uma terra muito longínqua para muitos, realidade para os bem integrados na sociedade do consumo e uma utopia para os menos favorecidos, um reino de opulência acessível aos primeiros e apenas um sonho de consumo para os últimos, enfim, uma ilha de riqueza cercada por um oceano de privações.

Comentários

Anônimo disse…
Sérgio, bela crônica! Estava procurando matérias que descrevessem algo relacionado aos aspectos ritualísticos subtstitutivos de rituais ancestrais humanos, seja para a busca de Deus nos rituais religiosos como nos de comunhão social para a compreensão de si próprio no contexto entre seres da mesma espécie e em um mundo diverso.

Parabéns, belo texto!

Antonio Menezes.