O PRESENTE DE CHÁVEZ
Chávez presenteando Obama e o pensativo Galeano
Por Cléber Sérgio de Seixas
Lá pelos idos de 90, especificamente na primeira metade daquela década, tive a oportunidade de ler uma obra que passou a ser meu livro de cabeçeira. Frequentador assíduo de bibliotecas, certa vez tomei de empréstimo um livro de título estranho. Pensei tratar-se de alguma ficção, mas quando comecei a lê-lo percebi que a realidade às vezes supera a ficção.
As Veias Abertas da América Latina. O livro, num estilo jornalístico, deslizava pelos fatos que marcaram a história do continente que certa vez Simón Bolívar sonhou tornar um só. Logo na introdução lia-se: "CENTO E VINTE MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA". No primeiro capítulo, um choque: "O SIGNO DA CRUZ NO CABO DAS ESPADAS", ou seja, aqueles que vieram d'além mar trazendo as boas novas e a conversão à religião do nazareno, ou melhor, do Papa, traziam também a cobiça escondida sob o manto da cristandade; a cruz pode se tornar espada dependendo de como utilizada; febre de ouro, febre de prata.
Daí por diante só sangue, fome de ouro e de prata, pilhagens, heróis tombados, índios escravizados, presidentes democraticamente eleitos depostos, e toda sorte de rapina por parte das nações hegemônicas, às vezes indiretamente levada a cabo pelo colaboracionismo das oligarquias locais. De Tupac Amaru a Guevara, de Jacobo Arbenz a Allende, de Potosí a Ouro Preto, da guerra da Tríplice Aliança até a invasão de Granada - um passeio, uma aula. A lição maior? É difícil extrair só uma deste magistral livro, mas creio que posso citar uma como ideia norteadora de toda a obra, usando as palavras do próprio autor, o jornalista uruguaio Eduardo Galeano: "Nestas terras, o que temos assistido não é a infância selvagem do capitalismo, mas a sua cruenta decrepitude. O subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento. É sua consequência". Em outras palavras, somos pobres, subdesenvolvidos, não porque somos indolentes ou ignorantes, mas porque somos ricos demais, ou seja, porque nosso subsolo está coalhado de minerais preciosos, porque nossas matas estão repletas de princípios ativos que podem curar da dengue ao câncer, porque nossas terras são extremamente férteis e, sobretudo, porque nossas burguesias são entreguistas e sempre colaboraram para que os países abaixo do Rio Bravo fossem meros apêndices das nações hegemônicas de plantão.
A desgraça das nações latino americanas é decorrente de sua extrema riqueza natural. Revoltas populares, como a que aconteceu recentemente em Cochabamba, Bolívia, na qual o povo saiu às ruas para impedir a privatização da água (até da chuva), foram e sempre serão reprimidas com violência. Terminada a leitura, se é que um dia vou terminá-la, é impossível não tomar partido, é impossível permanecer neutro, como não procura fazê-lo o próprio autor.
No penúltimo sábado, dia 18/04/09, a 5ª Cúpula das Américas poderia ter sido resumida a apenas uma cena: Chávez presenteando Obama com um livro após dizer as seguintes palavras: "para que o senhor conheça melhor a América Latina". O presente de Chávez pode converter-se num presente de grego a partir do momento em que os estadunidenses seguirem o exemplo de seu presidente, tomando o livro às mãos. Não preciso dizer o nome do livro.
A inusitada cena trouxe novamente à baila uma das literaturas mais inspiradoras para as esquerdas latino-americanas, posicionando-a no ranking das mais vendidas a partir de então. Alguns já estão dizendo que o episódio está servindo para desempoeirar a obra e livrá-la das teias de aranha. Perdôo tais críticas, pois elas podem estar vindo de quem não leu o livro ou então de quem o leu mas fingiu não entendê-lo. Basta uma atualização de cifras e estatísticas, acrescentando alguns fatos aqui e acolá - o Haiti dos Duvalier, a Nicarágua de Somoza aos Sandinistas, o Peru de Fujimori, o golpe midiático na Venezuela em 2002 e outros - para termos um livro novinho em folha.
Um espectro paira sobre a América do Sul, o espectro das chegadas de governantes de esquerda ao poder, forças obscuras se ajuntam numa aliança para exconjurá-lo. A paráfrase com as longínquas palavras do Manifesto Comunista de 1848 são propositais. Fernando Lugo no Paraguai, Rafael Correa no Equador, Evo Morales na Bolívia, Lula, Noriega na Nicarágua, Kirchner na Argentina, Chávez na Venezuela podem ser, todos, elos da mesma corrente. De esquerda? Nem tanto. No entanto, a nação representada por uma ave de rapina afia suas garras para quebrar os elos desta corrente.
Teorias da conspiração? Pode ser que sim, pode ser que não. Nos subsolos do poder, talvez, estejam sendo articuladas ações para erradicar novamente a suposta ameaça aos interesses estadunidenses representada pelos governos populares ascendendo ao poder na América Latina, um após outro. Enquanto isto a Quarta Frota é reativada, cujos navios trazem à lembrança as vésperas do golpe que depôs Allende e o nosso fatídico 64. Não podemos esquecer que pesam sobre nossos ombros a Doutrina Monroe e o Destino Manifesto - velhas ameaças ocultas em neologismos.
Destarte, urge a releitura da obra de Galeano, urgência esta endossada pela frase de George Santayana: "quem não conheçe o passado está condenado a repeti-lo".
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