A descrença na política e o fator Bolsonaro


Por Cléber Sérgio de Seixas

Em sua obra mais conhecida, Man's Worldly Goods, publicada em português com o título de História da Riqueza do Homem, o norte-americano Leo Huberman, cita Arthur Morgan para revelar uma técnica utilizada pelos indianos para capturar macacos. Textualmente:

“Haverá uma moral para os capitalistas, na história de como os indianos pegam macacos, contata por Arthur Morgan? ‘Segundo a história, tomam de um coco e abrem-lhe um buraco, do tamanho necessário para que nele o macaco enfie a mão vazia. Colocam dentro torrões de açúcar e prendem o coco a uma árvore. O macaco mete a mão no coco e agarra os torrões, tentando puxá-los em seguida. Mas o buraco não é bastante grande para que nele passe a mão fechada, e o macaco, levado pela ambição e gula, prefere ficar preso a soltar o açúcar’ ” (HUBERMAN, 1986, p. 303). 

No contexto da citação supratranscrita, Huberman discorre sobre como se deu o avanço do fascismo na Alemanha e Itália nos idos de 20 e 30 do século passado. Tal avanço só foi possível graças ao beneplácito do grande capital e das burguesias italiana e alemã, temerosos do protagonismo político da classe trabalhadora num mundo que assistia à agonia do capitalismo liberal decorrente de eventos como a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão. Ainda segundo o jornalista e escritor marxista: “Quando a economia entra em colapso e a classe trabalhadora marcha para o poder, então os capitalistas se voltam para o fascismo como a saída” (HUBERMAN, op. cit., p. 303). Mussolini e Hitler não teriam se tornado os condutores de suas nações – Duce e Führer, respectivamente – sem os favores dos detentores do capital em seus respectivos países. Esses capitalistas só toleraram a ascensão do fascismo por temerem a organização dos trabalhadores sob a batuta de anarquistas, socialistas e comunistas. 

A moral da história é que os capitalistas sempre trocarão liberdade por segurança quando surgir no horizonte alguma ameaça dos trabalhadores ao status quo burguês. Os burgueses toleram os totalitarismos de direita porque estes mantêm a posse dos meios de produção em suas mãos, tal como o macaco prefere ficar com o torrão de açúcar seguro em mãos, mesmo que a consequência disso seja a redução de sua liberdade, aqui entendida como liberdade nos negócios. Sob o nazismo os capitalistas não teriam suas empresas coletivizadas, mas seriam submetidos a um ferrenho controle estatal que visava à criação de um Estado corporativo. 

No Brasil dos anos 60, como na Itália e Alemanha nas três primeiras décadas do século XX, se deu algo semelhante. Temerosa das medidas populares do governo João Goulart, a burguesia tupiniquim acorreu aos quartéis e pediu que os militares golpeassem a democracia brasileira. O mesmo teria ocorrido a Getúlio Vargas, 10 anos antes de Goulart, caso o “pai dos pobres” não tivesse metido uma bala no próprio peito. O resultado da queda de Jango foram vinte e um anos de ditadura militar, tempo no qual as liberdades individuais foram duramente reprimidas, ao passo que os donos do capital locupletaram-se ainda mais.

Há um ano a democracia brasileira foi novamente golpeada com o impedimento de Dilma Rousseff, desta vez sob a alegação de “pedaladas fiscais”. Tal evento foi o ápice de um processo que teve início com a chegada de Lula ao poder em 2003. Desde a posse, uma sistemática campanha de demonização de Lula e do Partido dos Trabalhadores (PT), tem sido levada a cabo, tendo como ponta de lança a grande mídia corporativa, capitaneada pelas Organizações Globo. Do assim chamado Mensalão, que reinventou e subverteu a teoria do Domínio do Fato, à Operação Lava Jato, cuja missão precípua, ao que parece, é enjaular o ex-presidente, a opinião pública foi induzida pela opinião publicada a pensar que corrupção política é exclusividade do PT. Assim sendo, retirar o PT do poder a qualquer custo seria a garantia de mais moralidade na política. 

No afã de fustigar e enfraquecer o PT e seus candidatos, a direita pôs em evidência o discurso fascista. Se antes o fascismo em terras tupiniquins se resumia a carecas neonazistas e generais de pijama saudosos dos tempos da ditadura militar, hoje o que se constata é a difusão acelerada do ideário extremista de direita. Várias táticas foram utilizadas pela direita para enfraquecer a esquerda representada pelo PT. Algumas resultaram na projeção da direita radical no cenário político brasileiro. 

Uma delas se deu antes das eleições de 2010. Em 2009 uma ficha falsa de Dilma Rousseff foi publicada pelo jornal Folha de São Paulo quando a mesma era Ministra da Casa Civil do governo Lula. Naquele tempo se acenava que Dilma seria a ungida por Lula no pleito de 2010. Assim sendo, inicio-se uma campanha para desgastar a imagem da petista de forma a inviabilizar sua candidatura à Presidência. Foi nesse contexto que a Folha publicou a ficha. Posteriormente, constatou-se que a tal ficha era falsa e tinha como origem sites de extrema direita. No dia 25 de abril de 2009, a Folha admitiu que a autenticidade da ficha não poderia ser provada. O desmentido da Folha não foi suficiente para deter a onda de boatos sobre Dilma na Internet. Depois do episódio da ficha falsa, Dilma ainda apareceria numa montagem grosseira ao lado de um fuzil numa foto que seria dos tempos de sua luta contra a ditadura. Desde então, o fascismo tupiniquim colocou a cabeça fora do armário.

Outra tática da direita que colocou lenha na fogueira da direita extremista se deu quando das manifestações de junho de 2013. As assim chamadas Jornadas de Junho iniciaram com manifestações do Movimento Passe Livre contra o aumento das passagens do transporte coletivo em São Paulo. Em princípio, a grande imprensa foi contrária ao movimento. Quando a direita, representada pela grande mídia, percebeu a possibilidade de instrumentalizar as manifestações contra o governo federal comandado por Dilma Rousseff, posicionou-se favoravelmente às mesmas. Isso ficou claro na atitude de Arnaldo Jabor, comentarista político do Jornal Nacional, que num primeiro momento criticou o movimento, mas depois louvou-o. Instrumentalizadas pelas elites nacionais, as Jornadas de Junho se tornaram, então, um movimento onde conservadores, liberais e fascistas deram-se as mãos. Pedidos de intervenção militar, de uma reedição de 1964, seriam comuns a partir de então. Após junho de 2013 os extremistas de direita tomaram coragem para abandonar o armário, e para lá, até o momento, não voltaram. 

Dalí por diante uma onda conservadora tomou conta do país. O antipetismo deu a tônica da onda conservadora. Nas eleições de 2014, o Brasil elegeu o Congresso mais conservador desde 1964. Naquele pleito o número de votos brancos e nulos aumentou assustadoramente, o que pode revelar uma profunda descrença da população no processo eleitoral e na política. Tal descrença tem levado a saídas supostamente apolíticas, que conduzem ao poder portadores de discursos supostamente contrários à política tradicional, a exemplo de João Dória em São Paulo e Alexandre Kalil em Belo Horizonte.

Tal desalento do povo com a política também explica o aumento da popularidade de Jair Messias Bolsonaro, ao ponto de este figurar em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais de 2018, ficando atrás apenas de Lula. Os fascistas verde-amarelos, os desencantados com a política e os pobres de direita têm agora o seu Messias.

A ascensão de Bolsonaro é tributária da desmoralização dos políticos e da política; do discurso da lei e da ordem - em cujo bojo se inclui o lema “bandido bom é bandido morto”. O fator Bolsonaro deriva também dos noticiários policialescos nossos de cada dia: Datenas e Rezendes pariram Bolsonaro. O sucesso do verborrágico deputado federal junto às massas incautas é, outrossim, um subproduto do medo: o medo do marginal da esquina, do comunista escondido debaixo da cama, do homossexualismo destruidor de famílias, da liberação do aborto que impediria o nascimento de novos Beethovens, da afirmação das mulheres via feminismo etc. 

Aliás, constatar que alguns desses medos orbitam a esfera do fundamentalismo religioso ajuda a explicar a opção de Bolsonaro em 2016 pelo PSC (Partido Social Cristão). Sublinhe-se que a cerimônia do último casamento de Bolsonaro foi realizada por ninguém menos que o pastor Silas Malafaia. Saliente-se, também, seu batismo nas águas do Rio Jordão, em Israel, pelo pastor Everaldo, presidente nacional do PSC. Ao que tudo indica a “conversão” de Bolsonaro não passa de marketing político para auferir votos junto aos evangélicos fundamentalistas. 

A presente situação econômica, com cenários de desemprego galopante também contribui para a escalada de Bolsonaro. Lembre-se que o desemprego de 35% na Alemanha da década de 30 do século passado fortaleceu o nazi-fascismo.

Bolsonaro seria uma solução que prescinde da política. Contudo, não há saída civilizada para além da política, uma vez que ela é a ferramenta criada pela humanidade em estágios civilizatórios para mediar conflitos. Qualquer caminho que não passe por ela conduzirá à barbárie. 

Contudo, Bolsonaro pode não se revelar uma opção às elites nacionais, pois, parafraseando um velho ditado, a experiência do macaco o impede de meter a mão em cumbuca.  Se Lula puder candidatar-se – isto é, se não for preso ou perder seus direitos políticos antes -, as eleições polarizar-se-ão entre ele e o Messias da extrema direita. Esse não seria o cenário sonhado pelas elites nacionais que vêem no mais notório deputado federal do PSC uma incógnita. Até lá apostarão em algum nome do PSDB, como o atual prefeito de São Paulo, João Dória. Caso nenhum nome da direita se viabilize até o próximo pleito presidencial, pode ser que a estratégia adotada seja a não realização de eleições em 2018. 

Num improvável cenário de vitória de Bolsonaro este, uma vez na Presidência, terá que vergar-se à hegemonia dos donos do poder. Essa genuflexão o dulcificará, obrigando-o a abdicar de sua agenda extremista, para desespero de seus fãs mais reacionários. Sublinhe-se que tal agenda é anacrônica em função da unipolaridade que caracteriza o mundo contemporâneo, onde se constata a supremacia do sistema capitalista. 

A pergunta que fica é a seguinte: que rumos tomarão os seguidores e admiradores de Bolsonaro quando constatarem que ele, uma vez presidente, não colocará em prática as medidas radicais que tanto alardeia?

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Referências bibliográficas:

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 21. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986.

Comentários

Texto formidável, não há o que acrescentar ou retrucar. Parabéns ao articulista e aos Observadores!

Li emocionado com a clareza e lucidez...