Mal-estar e pós-modernidade

Bauman tinha razão

Por Cléber Sérgio de Seixas

O Brasil da atualidade assiste a eventos que, de tão surreais, enquadram o país naquilo que a literatura chama de realismo fantástico. Uma presidenta honesta afastada sob os aplausos do povo humilde; um ex-presidente condenado em primeira instância sem provas, enquanto um presidente sobre o qual pairam provas suficientes para seu afastamento segue incólume no cargo; o povo aplaudindo reformas que redundarão na piora de suas condições socioeconômicas, etc. Só é possível entender tais reações se a análise das mesmas se der no contexto da pós-modernidade. Conforme afirma Betto (2006, p. 273, 274), discorrendo sobre a crise da modernidade, “nem todo real é racional, nem todo racional é real. Trabalhadores lutaram pela derrubada do socialismo no Leste europeu; EUA, Reino Unido, França e Alemanha, outrora pátrias de exilados, restringem a entrada de estrangeiros em suas fronteiras; as democracias funcionam para as elites enquanto o povo não se manifesta”.  

Falecido em janeiro do corrente ano, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman foi quem distinguiu o mundo sólido, a modernidade, do mundo líquido, a pós-modernidade. Enquanto o primeiro mundo era pautado por certezas, o segundo é permeado por indagações. Enquanto a fixidez caracterizava o primeiro, a fluidez e a maleabilidade são intrínsecas ao segundo. Enquanto a morte de Deus é decretada no primeiro (Nietzsche), a religiosidade e a abertura à metafísica estão firmes e fortes no segundo. No primeiro uma sociedade industrial, no segundo uma sociedade pós-industrial marcada pelo consumismo. 

Apesar de pautada pela racionalidade, a modernidade não logrou resolver todos os problemas da humanidade. Malgrado o vertiginoso avanço no campo técnico-científico, problemas seculares como fome, guerras, epidemias e pobreza, quando não se mantiveram em níveis pré-modernos, se intensificaram. O desenvolvimento da técnica sob a modernidade trouxe consigo, por exemplo, duas guerras mundiais e a explosão de duas bombas atômicas sobre o Japão no fim de uma delas. Quando parecia que a Idade das Trevas e as tragédias que a marcaram, como a da Inquisição, jamais teriam paralelos, eis que a humanidade nos tempos modernos assiste ao retorno da escuridão quando do Holocausto. A modernidade não libertou o homem, mas trouxe consigo incertezas. 

Bauman cunha o termo Modernidade Líquida ancorado em Karl Marx e em seu parceiro Friedrich Engels, mais precisamente num trecho do Manifesto Comunista de 1848 no qual os pensadores alemães discorrem sobre o dinamismo e o papel revolucionário da burguesia:
“A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção, isto é, o conjunto das relações sociais. [...] Essa revolução contínua da produção, esse constante abalo de todo o sistema social, essa agitação e essa insegurança perpétuas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações sociais fixas e enferrujadas [...] se dissolvem; aquelas que as substituem envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que possuía solidez e estabilidade se volatiliza...” (ENGELS; MARX, 2009, p. 57).


Em outra tradução se leria no trecho grifado: “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Essa constante obsolescência de tudo marca o mundo moderno, onde nada é concreto, pelo contrário, onde tudo é líquido e volátil. Nesses tempos burgueses, tudo parece desfazer-se.

Assim sendo, talvez seja possível estabelecer paralelos entre os pensamentos de Marx e Engels no Manifesto e o de Bauman, uma vez que o último bebeu na fonte dos primeiros no curto trecho supramencionado, extraindo dele o norte de sua extensa produção literária. 

O mundo líquido do sociólogo polonês deita suas raízes no modo de produção capitalista hodierno. Poucos como os pais do socialismo científico souberam apontar as características do atual modo de produção com tamanha maestria.

Segundo a teoria marxista, todas as relações humanas decorrem de como os homens se relacionam enquanto produtores e consumidores. Em outras palavras, as forças econômicas determinam os movimentos e as modificações que ocorrem na sociedade. A economia política está na base de todas as relações humanas, é a estrutura, o alicerce, a base sobre a qual se erige a superestrutura. Nesta superestrutura, estariam presentes todas as facetas da convivência humana: a religião, a cultura, o direito, a tecnologia etc. Qualquer alteração na estrutura implicaria em mudanças na superestrutura. 

No prefácio de “Contribuição à Crítica da Economia Política” Marx aponta, em linhas gerais, os princípios do materialismo histórico. O autor assim se manifesta:
“Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas de Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência... [...] a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política. [...] na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (MARX, 2007, p. 45).

Bauman concorda com Marx quanto ao papel estrutural da economia: 

“Agora a ‘base’ da vida social outorgava a todos os outros domínios o estatuto de ‘superestrutura’ – isto é, um artefato da ‘base’, cuja única função era auxiliar sua operação suave e contínua. O derretimento dos sólidos levou à progressiva libertação da economia de seus tradicionais embaraços políticos” (BAUMAN, 2001, p. 11). 

Ou seja, o alicerce define como serão as paredes; a fundação determina como será a edificação. 

As relações de produção determinam as formas sociais de consciência. Dito de outra maneira, as formas sociais de consciência derivam das relações de produção em voga. O arcabouço jurídico, cultural, religioso e moral, enfim, a superestrutura, deita suas raízes na estrutura econômica. Portanto, para entender o mundo que nos cerca sob a ótica marxiana, devemos ter como ponto de partida a análise do sistema econômico hora vigente. Perscrutar o sistema capitalista nos moldes neoliberais ajuda a compreender o conjunto do pensamento e dos costumes na atualidade. Sem pretender esgotar o assunto, é possível apontar algumas consequências sociais do modo de produção da vida material sob a contemporaneidade neoliberal. Algumas delas:

Apologia à celeridade

Na vida que segue como se sob ritmo ditado pela velocidade dos equipamentos eletrônicos e dos dispositivos computacionais, tudo é pra ontem. A celeridade exigida no cumprimento das tarefas redunda em quantidade, não em qualidade. Parafraseando um velho adágio, pressa e perfeição não são amigas. Assim, a tecnologia da Terceira Revolução Industrial, no lugar de conceder ao trabalhador mais tempo para atividades voltadas ao lazer, à cultura, ao ócio criativo (Domenico de Masi), acabou estendendo as atividades laborais para além da jornada de trabalho, ampliando, assim, para usar um termo caro ao marxismo, a mais-valia relativa.

Difusão do conhecimento

No mundo líquido neoliberal predominam a falta de foco e aprofundamento em determinados assuntos. Constatam-se o excesso de informação e a conseqüente falta de formação. Na pós-modernidade informação nem sempre resulta em conhecimento. O excesso de estímulos proporcionados pela tecnologia, o grande fluxo de informações, não fomentam o aprofundamento em determinados temas. O saber um pouco sobre tudo cria a ilusão de muito saber.  Convém aludir, então, a declarações do saudoso escritor e filósofo, Umberto Eco, proferidas em 2015: “As mídias sociais deram a palavra a uma legião de imbecis que antes só falavam numa mesa de bar depois de uma taça de vinho, sem causar qualquer prejuízo à coletividade. [...] Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel. [...] O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Em outras palavras, neste mundo pós-moderno a velocidade na difusão de informações é feita sem a devida reflexão acerca das consequências desta. .

Descartabilidade 

Volatilidade de ideias e valores, nos mesmos moldes do consumo de produtos. O ciclo de vida dos produtos, ditado pelos interesses da grande indústria de massa, deve ser curto, o mesmo ocorrendo com os valores. Preconiza-se a obsolescência programada tanto no universo do consumo de produtos quanto no de ideias.

Aparência em lugar da essência

Culto à aparência. Como exemplo, eis a popularização das academias de ginástica, revalorização da aparência física em detrimento do conteúdo. No universo do show business, por exemplo, cantores têm que ter “presença de palco” antes de ter talento musical (qualidade vocal, repertório etc). O vetor tem mais valor que a mensagem ou conteúdo que encerra. 

Virtualização do real e “realização” do virtual


O real é preterido em prol do virtual. As relações virtuais sobrepõem-se aos contatos reais. Os laços sociais são fragilizados. O advento das redes sociais cibernéticas - Orkut, Facebook, Twitter e What’s up, por exemplo - cria contatos virtuais que não necessariamente redundarão em encontros reais. Exemplos: um indivíduo está num barzinho, fisicamente rodeado de amigos, porém não consegue desvencilhar-se da conexão com os “amigos” virtuais, mantendo, assim, mais “contato” com o virtual que com o real. As conversas com amigos de carne e osso não fluem, às vezes obstruídas por torpedos, “tuites” e mensagens do WhatsApp. Há indivíduos que, apegados excessivamente aos recursos oferecidos pelos equipamentos eletrônicos, vivem com se estivessem dentro de uma “Matrix”. Segundo  Betto (2006, p. 274) na pós-modernidade observa-se uma cultura da evasão da realidade.

Perenização do presente



Tudo deve ser novo, como conseqüência o termo “velho” é rebatizado. Destarte, os indivíduos em idade avançada, em lugar de serem chamados de velhos ou idosos, passam a ser denominados “de terceira idade”, “de maior idade”, “de melhor idade”, pois o indivíduo velho não é mais aquele que viveu muito e, por conseguinte, tem muita experiência de vida. Resta, assim, apenas sua identificação com o que é ultrapassado e anacrônico. 

Atomização do indivíduo



Engajamento em causas sociais não é mais a ordem do dia. Recai-se do social para o privado. Problemas sociais são considerados extensões de desvios pessoais. Daí a solução deveria ser buscada no próprio indivíduo. Segundo Bauman (2001, p. 84) “a responsabilidade pela danação não pode ficar com a sociedade; a redenção e a condenação são produzidas pelo indivíduo e somente por ele – o resultado do que o agente livre fez livremente de sua vida”. Assim sendo, os desgraçados seriam os culpados das desgraças que os afligem. É nesse contexto que pululam as literaturas de auto-ajuda, verdadeiras panaceias pós-modernas com foco no indivíduo.

Identificação do consumo com felicidade



“Consumo, logo existo” é uma frase que poderia sintetizar o consumo nos moldes pós-modernos. Na modernidade líquida, sai o cidadão e entra o consumidor; o “ter” passa a ter prevalência sobre o “ser”; homens de bem cedem lugar a homens de bens. Na concepção consumista, os maiores prazeres que estariam à disposição dos indivíduos seriam aqueles associados ao consumo de produtos. Saliente-se que na modernidade líquida não somente os objetos são conformados aos sujeitos, como também estes aos primeiros. Marx (2007, p. 246, 247), discorrendo sobre as facetas da produção, assim se manifesta: 
“Mas não é somente o objeto que a produção fornece ao consumo. [...] A produção não somente provê de materiais a necessidade; provê também de uma necessidade os materiais. [...] A necessidade do objeto que experimente o consumo foi criada pela percepção do objeto. O objeto de arte, e analogamente qualquer outro produto, cria um público sensível à arte e apto para gozar da beleza. De modo que a produção não somente produz um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto. A produção engendra, portanto, o consumo”


Em outros termos, a relação sujeito-objeto é subvertida, promovendo o que o marxismo denomina fetichismo - no lugar de conceder ao sujeito um objeto, trata-se de prover ao objeto um sujeito.

Há outras faces da pós-modernidade, mas discorrer sobre todas não é a missão deste artigo. Por hora pode-se afirmar que a modernidade está em crise. Como bem afirmaram os escritores do Manifesto Comunista de 1848, tudo o que é sólido se evapora. O capitalismo, no entanto, se reinventa para sobreviver. Por mais paradoxal que pareça, talvez um dos segredos da solidez do sistema capitalista seja exatamente sua flexibilidade, maleabilidade, fluidez. Sobre isto o sociólogo polonês assim se manifesta:
“Lembremos, no entanto, que tudo isso seria feito não para acabar de uma vez por todas com os sólidos e construir um admirável mundo novo livre deles para sempre, mas para limpar a área para novos e aperfeiçoados sólidos; para substituir o conjunto herdado de sólidos deficientes e defeituosos por outro conjunto, aperfeiçoado e preferivelmente perfeito, e por isso não mais alterável. [...] Os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos em estado avançado de desintegração; e um dos motivos mais fortes por trás da urgência em derretê-los era o desejo de, por uma vez, descobrir ou inventar sólidos de solidez duradoura, solidez em que se pudesse confiar e que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável” (BAUMAN, 2001, p. 10). 


Constatada a crise da modernidade, não se sabe se a fluidez intrínseca à pós-modernidade produzirá outros sólidos como na citação supra transcrita. O mal estar da pós-modernidade consiste na consciência do fracasso da modernidade. Tal consciência constata que a modernidade fracassou em suas promessas. 

Na pós-modernidade “somos invadidos pela incerteza, a consciência fragmentária, o sincretismo do olhar, a disseminação, a ruptura e a dispersão. [...] Nosso processo de conhecimento se caracteriza pela indeterminação, descontinuidade e pluralismo” (BETTO, 2006, p. 273, 275). Nessa era de incertezas, a deusa razão, que chefiava o panteão da modernidade, chegou a seu crepúsculo. Na pós-modernidade transita-se do nada a lugar nenhum e não se crê em nada. Há, sim, um retorno à religiosidade, como foi dito no início deste artigo, mas trata-se de uma religiosidade em moldes pós-modernos, com o predomínio daquilo que alguns chamam de customização da fé. 

Portanto, sem fé, sem referências, sem cartas náuticas e sem timoneiros, para onde caminha a humanidade? É uma indagação mais que relevante nesses tempos sombrios.

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Referências bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


BETTO, Frei. A Mosca Azul: reflexão sobre o poder. Rio de janeiro: Rocco, 2006.


ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Manifesto do Partido Comunista. 2. ed. São 
Paulo: Escala, 2009.

MARX, KARL. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.


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