Casamento real
Por Frei Betto*
Em Cambridge, onde morei em 1987, descobri porque a BBC não produz telenovelas. País coroado por lendária família real, como a Inglaterra, dispensa contos de fadas. Basta ligar a TV. A telinha, ao focar a monarquia, exibe cenas tão exuberantes que a realidade parece superar a fantasia.
Aristóteles, mestre em teoria literária, ensina que a ficção não precisa ser verdadeira, precisa ser verossímil. O espectador ou leitor tem que ficar convencido de que toda aquela fantasia brotada da imaginação tem certa coerência. Júlio Verne e Monteiro Lobato que o digam.
Ora, e se eu dissesse a você, leitor(a), que acabo de ler um romance no qual uma princesa, Anne, depois de 20 anos de casada, decide se divorciar de seu marido, Mark, por suspeita de adultério? Como narrativas centradas na nobreza requerem temperos de romantismo e intriga, sedução e traição, o irmão da princesa, Charles, herdeiro do trono, também se separa de sua bela mulher, Diana, mãe de seus dois filhos, para se juntar a uma mulher divorciada, a inexpressiva Camilla.
Indignada com a atitude do filho, a rainha se recusa a abdicar, impedindo-o de ascender ao trono. A princesa Diana cai nos braços de um miliardário árabe, sob o risco de dar à luz, na nobre linhagem da Casa de Windsor, cabeça da Igreja Anglicana, o primeiro rebento muçulmano...
Mais eis que o destino a conduz à morte num trágico acidente automobilístico num túnel de Paris. Destronada da nobreza e da vida, Lady Di passa a merecer veneração mundial por sua beleza e dedicação a causas sociais.
Andrew, outro filho da rainha, se casa com uma tal Sarah. Seis anos depois, o casamento fracassa. Sarah perde as regalias nobiliárquicas e, desesperada, é flagrada negociando com empresários, por quantia superior a R$ 1 milhão, acesso ao ex-marido, representante comercial da Grã-Bretanha.
São todas histórias reais – no duplo sentido do adjetivo. Que autor de novela ou romance bolaria trama tão instigante e apimentada?
Agora, o mundo parece esquecer guerras e dores, trabalhos e dificuldades, para se deliciar com o casamento do príncipe William, filho de Charles e Diana, com a plebéia Kate Middleton. O sonho em forma de realidade! O verdadeiro reality show!
Não apenas os noivos expressam felicidade. A combalida economia britânica afetada pela crise do capitalismo iniciada em 2008, também se rejubila. Como isca de turismo e venda de suvenires, a família real britânica garante aos cofres do país cerca de R$ 1,2 bilhão por ano. Nesses poucos dias, prevê-se um faturamento de R$ 4,8 bilhões, graças aos milhares de turistas que afluem a Londres pelo prazer de repetir o resto da vida: “Naquele dia eu estava lá”.
A UK Gift Company, especializada na venda de penduricalhos reais (chaveiros, isqueiros, louças com foto dos noivos, bolsas estampadas etc) calcula um aumento de 40% nas vendas.
Mundo afora, mais de 2 bilhões de pessoas, de olho nas bodas reais via TV ou internet, fazem a festa das agências de publicidade e das empresas anunciantes.
Acima de toda essa nobre parafernália paira uma pergunta: vale a pena os súditos britânicos sustentarem a família real? Ora, a Casa de Windsor custa, a cada súdito, a bagatela de R$ 1,66 por ano. E tem em propriedades algo em torno de R$ 16 bilhões. A maior parte desse patrimônio está alugada, e a renda vai direto para os cofres públicos. Caso a monarquia fosse abolida, a família teria direito de apropriar-se da renda.
E nós, pobres plebeus, que admiramos extasiados bodas reais e já não temos monarquia? Elementar, meu caro Watson: revestimos os nossos ídolos de majestade – o rei Pelé; Roberto Carlos, o rei; misses coroadas e escolas de samba em pompas principescas.
Ainda bem que o nosso príncipe destronado, dom João Henrique de Orléans e Bragança, bisneto da princesa Isabel, assume tranqüilo sua condição de feliz plebeu. Fotógrafo e hoteleiro, vive numa bucólica casa em Paraty e não perde a oportunidade de oferecer aos amigo uma deliciosa cachaça.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de Conversa sobre a fé e a ciência (Agir), entre outros livros.
Fonte: jornal Estado de Minas – 28/04/2011.
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Aristóteles, mestre em teoria literária, ensina que a ficção não precisa ser verdadeira, precisa ser verossímil. O espectador ou leitor tem que ficar convencido de que toda aquela fantasia brotada da imaginação tem certa coerência. Júlio Verne e Monteiro Lobato que o digam.
Ora, e se eu dissesse a você, leitor(a), que acabo de ler um romance no qual uma princesa, Anne, depois de 20 anos de casada, decide se divorciar de seu marido, Mark, por suspeita de adultério? Como narrativas centradas na nobreza requerem temperos de romantismo e intriga, sedução e traição, o irmão da princesa, Charles, herdeiro do trono, também se separa de sua bela mulher, Diana, mãe de seus dois filhos, para se juntar a uma mulher divorciada, a inexpressiva Camilla.
Indignada com a atitude do filho, a rainha se recusa a abdicar, impedindo-o de ascender ao trono. A princesa Diana cai nos braços de um miliardário árabe, sob o risco de dar à luz, na nobre linhagem da Casa de Windsor, cabeça da Igreja Anglicana, o primeiro rebento muçulmano...
Mais eis que o destino a conduz à morte num trágico acidente automobilístico num túnel de Paris. Destronada da nobreza e da vida, Lady Di passa a merecer veneração mundial por sua beleza e dedicação a causas sociais.
Andrew, outro filho da rainha, se casa com uma tal Sarah. Seis anos depois, o casamento fracassa. Sarah perde as regalias nobiliárquicas e, desesperada, é flagrada negociando com empresários, por quantia superior a R$ 1 milhão, acesso ao ex-marido, representante comercial da Grã-Bretanha.
São todas histórias reais – no duplo sentido do adjetivo. Que autor de novela ou romance bolaria trama tão instigante e apimentada?
Agora, o mundo parece esquecer guerras e dores, trabalhos e dificuldades, para se deliciar com o casamento do príncipe William, filho de Charles e Diana, com a plebéia Kate Middleton. O sonho em forma de realidade! O verdadeiro reality show!
Não apenas os noivos expressam felicidade. A combalida economia britânica afetada pela crise do capitalismo iniciada em 2008, também se rejubila. Como isca de turismo e venda de suvenires, a família real britânica garante aos cofres do país cerca de R$ 1,2 bilhão por ano. Nesses poucos dias, prevê-se um faturamento de R$ 4,8 bilhões, graças aos milhares de turistas que afluem a Londres pelo prazer de repetir o resto da vida: “Naquele dia eu estava lá”.
A UK Gift Company, especializada na venda de penduricalhos reais (chaveiros, isqueiros, louças com foto dos noivos, bolsas estampadas etc) calcula um aumento de 40% nas vendas.
Mundo afora, mais de 2 bilhões de pessoas, de olho nas bodas reais via TV ou internet, fazem a festa das agências de publicidade e das empresas anunciantes.
Acima de toda essa nobre parafernália paira uma pergunta: vale a pena os súditos britânicos sustentarem a família real? Ora, a Casa de Windsor custa, a cada súdito, a bagatela de R$ 1,66 por ano. E tem em propriedades algo em torno de R$ 16 bilhões. A maior parte desse patrimônio está alugada, e a renda vai direto para os cofres públicos. Caso a monarquia fosse abolida, a família teria direito de apropriar-se da renda.
E nós, pobres plebeus, que admiramos extasiados bodas reais e já não temos monarquia? Elementar, meu caro Watson: revestimos os nossos ídolos de majestade – o rei Pelé; Roberto Carlos, o rei; misses coroadas e escolas de samba em pompas principescas.
Ainda bem que o nosso príncipe destronado, dom João Henrique de Orléans e Bragança, bisneto da princesa Isabel, assume tranqüilo sua condição de feliz plebeu. Fotógrafo e hoteleiro, vive numa bucólica casa em Paraty e não perde a oportunidade de oferecer aos amigo uma deliciosa cachaça.
* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de Conversa sobre a fé e a ciência (Agir), entre outros livros.
Fonte: jornal Estado de Minas – 28/04/2011.
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