Neoliberalismo e barbárie - 50 anos do 11 de setembro chileno

Pinochet à direita e Milton Friedman ao centro

Por Cléber Sérgio de Seixas

Parafraseando Marx, o neoliberalismo vem ao mundo com uma mancha de sangue numa das faces, além de coberto, dos pés à cabeça, de lama e sangue daqueles que constituem obstáculo a esse sistema. 

O livro mais famoso de Milton Friedman é Capitalismo e Liberdade, obra na qual o mais notório teórico da Escola de Chicago indica os princípios norteadores do livre mercado global. Liberdade é um dos mantras neoliberais. Mas a principal liberdade evocada pelos teóricos, práticos e entusiastas desse sistema é a dos negócios. Quando tal liberdade é ameaçada, os bons burgueses apelam à violência e apoiam ditaduras com o fito de suprimir as liberdades individuais daqueles que oferecem obstáculos à liberdade de mercado.

O evento inaugural do neoliberalismo foi um coup d’état, especificamente, aquele que Pinochet e companhia desferiram contra o governo de Salvador Allende no Chile da primeira metade da década de 70. Se, por um lado, o Chile foi palco da primeira experiência socialista instaurada em moldes burgueses por via eleitoral, por outro inaugurou-se naquele país a violência enquanto método de implantação e manutenção do neoliberalismo. 

Hodiernamente, é pacífico considerar que o Chile pós Allende foi o primeiro laboratório dos experimentos neoliberais. Contudo, o primeiro contato desse país com o ideário neoliberal remonta a 1956, ano em que foi oficialmente lançado o Projeto Chile. Resultante da parceria  entre os Estados Unidos e a Universidade Católica do Chile, tal projeto consistia em financiar estudantes chilenos para aprender economia na Universidade de Chicago. Tais jovens, que ficariam conhecidos como Chicago Boys, tinham suas despesas pessoais e escolares pagas por contribuintes e por fundações estadunidenses, tais como a Ford. Os Chicago Boys não se resumiram a estudantes do Chile, haja vista que a partir de 1965 o programa também passou a incluir estudantes de toda a América Latina, recebendo alunos do México, Argentina e Brasil. Segundo Klein (2008, p. 77):

Durante a vigência do programa, havia entre quarenta e cinquenta latino-americanos estudando economia em nível de graduação, em tempo integral - aproximadamente um terço do total de alunos do departamento. Em programas semelhantes, na Universidade de Harvard e no MIT, havia apenas cerca de quatro ou cinco latino-americanos. (...) em apenas uma década, a ultraconservadora Universidade de Chicago tinha se transformado no principal destino dos latino-americanos que desejavam estudar economia no exterior…

Os Chicago Boys tinham como principal missão difundir as ideias neoliberais pela América Latina, minando a hegemonia do keynesianismo e do desenvolvimentismo.

O apoio dos Estados Unidos ao golpe de Estado e à consolidação da ditadura chilena é hoje notório. Os EUA tinham olhos sobre o Chile desde a eleição de Allende, em 1970. Os falcões de Washington e as corporações estadunidenses temiam que a via chilena se tornasse para o mundo um modelo de implantação pacífica do socialismo. Outro temor era a nacionalização da exploração do cobre, maior fonte de renda do Chile, atividade dominada por grandes mineradoras dos Estados Unidos.

Antes de as bombas dos jatos Hawker Hunter destruírem parte do La Moneda, e Allende e alguns apoiadores perderem a vida em seu interior, várias foram as investidas contra o governo da Unidade Popular. No afã de destruir a via chilena para o socialismo, a burguesia nativa, em conluio com Washington, valeu-se de vários estratagemas, a exemplo de provocar crises de desabastecimento de alimentos, financiar, com a ajuda da CIA, uma greve de caminhoneiros cuja finalidade precípua foi provocar desabastecimento e mergulhar a economia no caos, investir em grupos como o Pátria e Liberdade, agremiação nazifascista que cometeu vários atentados terroristas com o objetivo de criar o caos para justificar uma intervenção militar. Em 29 de junho de 1973 fracassa o El Tanquetazo, tentativa de golpe de Estado sufocada por soldados leais a Carlos Prats, Comandante-em-Chefe do Exército e leal à Constituição.

Consumado o golpe, a junta militar decretou um estado de sítio que duraria sete anos e mergulharia o Chile numa das mais violentas ditaduras do Cone Sul, tendo ceifado a vida de aproximadamente 4.000 pessoas e torturado cerca de 38.000. Presume-se que apenas a famigerada Caravana da Morte tenha executado 75 prisioneiros políticos entre os dias 30 de setembro e 22 de outubro de 1973, a maioria integrantes da UP (Unidade Popular), alguns deles fatiados com facões antes de serem fuzilados. Foram criados campos de concentração e trabalhos forçados, além de centros de tortura, a exemplo da Ilha Dawson, da Colônia Dignidade, da Villa Grimaldi e do surreal Veleiro Esmeralda.

Documentos desclassificados do Arquivo de Segurança Nacional dos Estados Unidos revelam que numa conversa entre Henry Kissinger, então Secretário de Estado dos EUA, e o presidente Richard Nixon, ocorrida em 16 de setembro de 1973, em alusão ao golpe que suprimiu a democracia chilena, o primeiro afirmou que “nós não fizemos. Quero dizer, nós ajudamos.” No mesmo dia em que Nixon e Kissinger conversaram, o cantor Victor Jara, professor universitário e integrante do Partido Comunista, foi assassinado no Estádio Chile, à época transformado num grande centro de detenção, tortura e execução dos opositores do regime. Três anos depois, durante reunião realizada em Santiago, em 1976, em meio à Assembleia Geral da OEA, Kissinger assim se manifestou: “Nós simpatizamos com o que eles estão tentando fazer aqui” e, se referindo a Pinochet, “ele prestou um grande serviço ao Ocidente ao derrubar Allende”

Os Garotos de Chicago deram sua parcela de contribuição à ditadura ao elaborarem um programa econômico de 500 páginas apelidado de “O Tijolo”. Muito assemelhado em conteúdo ao supramencionado livro de Friedman, o documento se inspirava na clássica tríade neoliberal: privatizações, desregulamentação e cortes nos gastos sociais. O ditador Pinochet, fiel ao receituário dos Chicago Boys e, obediente às recomendações do guru da Escola de Chicago (que o visitou em 1975), privatizou algumas empresas estatais, abriu as fronteiras para a importação, derrubando tarifas protecionistas, cortou drasticamente gastos governamentais e eliminou o controle de preços. Jardins de infância e cemitérios foram privatizados, escolas públicas foram substituídas por créditos estudantis (vouchers) e escolas licenciadas (com concessões que chegavam a 90 anos). O sistema de seguridade social foi privatizado. O saldo da aventura neoliberal chilena, já em 1974, foi uma inflação de 375%, a mais alta do planeta e quase duas vezes maior que a mais alta do período Allende. O desemprego chegou a 30% em 1982, a fome aumentou assustadoramente, pequenas empresas fecharam e os preços de produtos básicos subiram drasticamente num cenário de hiperinflação (KLEIN, 2008). Entre 1973 e 1977, 443 empresas foram privatizadas. 

É prudente ter cuidado ao conceituar o neoliberalismo. Segundo Dardot e Laval (2016, p. 7):

O neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e todas as esferas da vida. 

Embora longa, vale aqui a conceituação de Harvey (2008, p. 12):

O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício (grifos meus). 

Os tempos são outros: o neoliberalismo contemporâneo, em primeira instância, não se vale de fardas e tanques para manter-se hegemônico, posto que conquistou corações e mentes ao trazer em seu bojo elementos como a atomização dos indivíduos, a crença no empreendedorismo, as literaturas de auto-ajuda, a teologia da prosperidade, etc. Caso quaisquer desses falhem, a força bruta de corpos armados recolocará as coisas em seus devidos lugares. O neoliberalismo ainda é o paradigma capitalista atual, regra também válida para o Chile, 50 anos depois do golpe militar que o instaurou no país. Falta ao Chile fazer as pazes com seu passado. Entre os chilenos ainda há aqueles que pouco sabem sobre a ditadura que prevaleceu por 17 anos em seu país e implicou em enormes perdas humanas. Muitos ignoram processos de justiça de transição, enquanto tantos outros não têm compromisso com questões de direitos humanos. No Chile ainda se vive sob uma Constituição elaborada nos tempos da Ditadura (1980). 

Seja qual for o futuro chileno, nunca é demais lembrar que seu passado recente não pode ser dissociado do neoliberalismo, sistema cuja efetiva implantação - dada a dimensão de seus custos sociais, sobretudo para os mais pobres, aqueles que mais necessitam de Estado - requer um cenário autoritário, de supressão das liberdades individuais em prol de uma suposta liberdade de mercado. Assim, seguir para o futuro é desanuviar o passado. Países como Chile, Brasil, Argentina, Uruguai e tantos outros que estiveram sob o tacão de ditaduras devem conhecer seu passado para evitar repeti-lo. 

A racionalidade neoliberal nada tem de racional, na medida em que a opção pela opulência de uns em detrimento da miséria de muitos prescinde da razão e se vale da violência. 

Referencial bibliográfico

Aventuras na História - A Caravana da Morte de Pinochet. Disponível em https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/caravana-da-morte-de-pinochet.phtml Acesso em: 11 set. 2023.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2016.


EUA devem pedir desculpas pelo golpe de Pinochet no Chile? Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw087x88lq5o.amp Acesso em: 11 set. 2023.


HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. 


LABORDE, Antônia. O encontro privado entre Kissinger e Pinochet Disponível em https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/o-encontro-privado-entre-kissinger-e-pinochet-por-antonia-laborde Acesso em: 11 set. 2023.


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