Terrorismo, fundamentalismo e moral religiosa

Os últimos momentos do policial Ahmed Merabet

Por Cléber Sérgio de Seixas

É possível que alguém que professa determinada crença religiosa, e cujo comportamento se fundamenta em regras oriundas da mesma, possa cometer atos violentos em defesa de sua fé? É possível que alguém venha a massacrar, mutilar e assassinar e depois tentar justificar tais ações em nome de uma religião, de uma divindade ou de um profeta? Das Cruzadas à Inquisição, do Massacre da Noite de São Bartolomeu à conversão forçada de índios ao cristianismo no Novo Mundo, do pano de fundo religioso da limpeza étnica israelense sobre a população palestina às matanças do Estado Islâmico na Síria e no Iraque, a História é recheada de fatos e acontecimentos que provam que sim.

Antes de se prosseguir, é necessário definir fundamentalismo. Boff (2002, p. 25) assim o define:

“Não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da história, que obriga a contínuas interpretações e atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial. Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista”. 

Boff (2002) também aponta as modalidades de fundamentalismo hora em voga: o fundamentalismo protestante, o católico, o islâmico, o neoliberal e o técnico-científico. O autor indaga se não inauguramos uma guerra de fundamentalismos. No que tange ao fundamentalismo islâmico, os últimos atentados terroristas em Paris parecem indicar que sim.

O ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo, perpetrado por extremistas, trouxe novamente à baila a questão do fundamentalismo de algumas alas do Islã. Há que se condenar o assassinato dos profissionais do periódico e dos três policiais, dentre eles o muçulmano Ahmed Merabet, da mesma forma que se deve desdenhar a instrumentalização de viés político-eleitoral que a direita francesa tem feito com o funesto acontecimento. Deve-se, também, questionar as motivações de cariz religioso dos terroristas, implícitas no fato de os irmãos Cherif e Said Kouachi terem gritado “Alá é grande" e "O profeta foi vingado!” durante o ataque. 


Alguns dirão que o pano de fundo do atentado, na verdade, é político, não religioso. Esses tais deveriam considerar que a religião é a política por outros meios ou, em outras palavras, “a religião é a política realizada em nome de Deus” (VIANNA, 2014, p. 12).

No filme Os Cavalos de Deus (Les Chevaux de Dieu, 2012) dois irmãos da periferia de Casablanca, Marrocos, são aliciados por extremistas islâmicos para participar dos atentados terroristas que em 16 de maio de 2003 ceifaram a vida de 33 pessoas e deixaram cerca de 100 feridas na maior cidade marroquina.  Inspirado em fatos reais, o drama dirigido pelo francês de origem muçulmana Nabil Ayouch registra a gradual conversão dos jovens ao radicalismo islâmico – da pobreza extrema no distrito de Sidi Moumen à fatídica decisão de se tornarem homens-bomba. Descontada a licença poética, a película faz um importante relato dos bastidores do processo que transforma jovens com poucas perspectivas de vida em indivíduos determinados a levar a cabo suas missões suicidas – suposto atalho para o paraíso. A vida e a arte apontam a conversão a um islamismo radical como subproduto da desestruturação familiar, da pobreza, da baixa escolaridade, da impossibilidade de ascensão social, etc. Não se trata de delinquentes natos ou de psicopatas os que escolhem trilhar tal caminho, mas de pessoas comuns que fizeram do fundamentalismo religioso o norte de suas vidas. 

Não é necessário apelar ao método Charlie Hebdo – de extremo mau gosto, diga-se de passagem, cuja intenção inconfessa talvez seja demonizar o islamismo, estimular a xenofobia e servir de instrumento para a extrema-direita francesa obter dividendos eleitorais – para angariar o ódio dos jihadistas. Aliás, deve-se frisar que muito pouco é necessário para alguém se tornar uma persona non grata aos olhos de radicais islâmicos ou de fundamentalistas de outras religiões. Para Salman Rushdie ser sentenciado à morte pelo Aiatolá Khomeini em 1989 bastou ter escrito um livro - Versos Satânicos - considerado ofensivo ao profeta Maomé. Naquela ocasião, Khomeini incitou todos os muçulmanos zelosos, leia-se, radicais, a assassinar o escritor. Como se depreende, basta questionar - não necessariamente satirizar ou ridicularizar - os princípios basilares da fé alheia para se converter num alvo potencial do ódio daqueles que tem na religião sua pedra fundamental.

Há quem afirme que a crença numa entidade superior, mono ou politeísticamente, é o que garante a moralidade aos indivíduos, ou seja, provê-lhes um senso de ética que se supõe superior ao daqueles que se declaram descrentes. Watchman Nee, autor renomado no meio cristão, por exemplo, afirma que os padrões morais dos homens relacionam-se diretamente a seus conceitos a respeito de Deus e que os ateus, invariavelmente, têm um baixo padrão de responsabilidade moral (NEE, 1994). Após generalizar dessa forma, o autor relativiza dizendo que não conhece todos os ateus, mas, dos milhares que conhece, nenhum deles possui uma moral recomendável (NEE, 1994).  Em outro trecho, o escritor chinês, referindo-se à Bíblia, afirma o seguinte: “Quão elevado é seu padrão moral e quão baixos somos diante dele! Você não pode negar que ela apresenta o melhor código de ética para a humanidade” (NEE, 1994). Antes de concordar com Nee ou discordar de suas argumentações, é necessário ter em conta o padrão moral que alguns trechos bíblicos evocam.

O velho testamento bíblico, por exemplo, tem trechos cuja moral é assustadora. A história de Noé causa espanto na medida em que somente ele, sua família e alguns animais foram poupados do extermínio. Todos os demais, incluindo mulheres, idosos, crianças recém-nascidas e os animais que ficaram fora da arca – estes últimos presumivelmente inocentes – foram tragados pelo dilúvio. 

O capítulo 19 do livro de Juízes narra a história de um levita que viajava com sua concubina. Foram salvos de passar a noite ao relento pela hospitalidade de um velho que lhes ofereceu abrigo. Enquanto jantavam, eis que homens da cidade bateram à porta da casa exigindo que o velho lhes entregasse o homem para que dele abusassem. O dono da casa assim reagiu:

“Não, irmãos meus, não façais semelhante mal; já que o homem está em minha casa, não façais tal loucura. Minha filha virgem e a concubina dele trarei para fora; humilhai-as e fazei delas o que melhor vos agrade; porém a este homem não façais semelhante loucura.” (JUIZES 19: 23-24). 

Na sequência a concubina é entregue aos homens, que abusam dela durante toda a noite. Pela manhã, a mulher está morta à porta da casa. Ao constatar a morte da concubina, o levita assim procedeu: “Chegando a casa, tomou de um cutelo e, pegando a concubina, a despedaçou por seus ossos em doze partes; e as enviou por todos os termos de Israel” (JUÍZES 19: 29).

Sobre esse trecho, Dawkins (2007, p. 250) assim se manifesta:

“Aparece novamente o ethos misógino, firme e forte. Acho o termo ‘humilhai-as’ especialmente aterrador. Divirtam-se humilhando e estuprando minha filha e a concubina desse padre, mas mostrem o devido respeito por meu convidado, que, afinal de contas, é homem”.  

Sobre outro trecho do livro de Juízes, Dawkins (2007, p. 252, 253) diz o seguinte:

“Se Deus garantisse a vitória de Jefté sobre os amonitas, Jefté sacrificaria, sem falta, na fogueira, ‘aquele que sair primeiro da porta da minha casa e vier ao meu encontro, voltando eu’. Jefté tinha mesmo a intenção de derrotar os amonitas (‘uma grande derrota’) e voltou para casa vitorioso. Como era de esperar, sua filha, única filha, saiu da casa para recebê-lo (com tambores e com danças) e - que pena - foi a primeira a da porta sair. Jefté rasgou suas roupas, compreensivelmente, mas não havia nada que ele pudesse fazer. Deus estava obviamente ansioso pela oferenda prometida, e dadas as circunstâncias a filha, respeitosamente, concordou em ser sacrificada. Ela só pediu permissão para ficar dois meses nas montanhas para lamentar sua virgindade. Ao fim desse período ela voltou, obediente, e Jefté a cozinhou”.

Há outros exemplos, no novo e no velho testamento, em que se constata um tipo de moral que dificilmente seria aplicado hoje. Quem em sã consciência entregaria a filha para ser abusada no lugar de um hóspede de sua casa? Quem, como o patriarca Abraão, tentaria sacrificar o próprio filho seguindo ordens do Criador? Que pai hoje seria capaz de matar sua filha e incinerá-la num altar para cumprir um voto feito a Deus? Há algum cristão que considera que a mulher deve ficar calada na igreja (1 CORÍNTIOS 14:34)? Quem se candidataria a apedrejar um homem até a morte só porque o mesmo violou o Shabat , à semelhança do relato de Números 15: 32-36?

Ainda conforme Dawkins (2007, p. 256, 257):

“Eu sei, eu sei, é claro, os tempos mudaram, e nenhum líder religioso de hoje em dia (tirando os do Talibã ou seus equivalentes cristãos americanos) pensa como Moisés. Mas é isso que estou dizendo. Tudo o que estou afirmando é que a moralidade moderna, venha de onde vier, não se origina da Bíblia. (...) E a história bíblica da destruição de Jericó por Josué, e da invasão da Terra Prometida em geral, não se distingue em termos morais da invasão da Polônia por Hitler, ou dos massacres dos curdos e dos árabes dos pântanos do sul por Saddam Hussein. A Bíblia pode ser uma obra de ficção interessante e poética, mas não é o tipo de livro que deveria ser dado às crianças para formar seus princípios morais”. 

Muitos exegetas dirão que alguns trechos bíblicos, sobretudo do velho testamento, não podem ser interpretados de forma literal. Sobre isto, convém sublinhar que:

“Os apologistas não podem sair pela tangente alegando que a religião fornece a eles alguma espécie de diretriz para definir o que é bom e o que é ruim — uma fonte privilegiada indisponível para os ateus. Eles não podem se safar dizendo isso, nem mesmo quando usam seu truque favorito, o de interpretar as Escrituras selecionadas como ‘simbólicas’, e não literais. Por que critério alguém decide quais trechos são simbólicos e quais são literais?” (DAWKINS, 2007, p. 256).

Carl Sagan (1996) é mais um autor a questionar a suposta proeminência moral bíblica e os critérios segundo os quais se considera trechos da Bíblia simbólicos ou literais: 

“Se a Bíblia não pode ser tomada inteiramente ao pé da letra, que partes têm inspiração divina e que partes são apenas falíveis e humanas? Caso admitamos a existência de erros nas Escrituras (ou concessões à ignorância da época), como pode a Bíblia ser um guia infalível da ética e da moral? Será que agora as seitas e os indivíduos podem aceitar como autênticas as partes da Bíblia que lhes agradam e rejeitar as inconvenientes e incômodas? Por exemplo, a condenação do assassinato é essencial para o funcionamento de uma sociedade, mas se a reação divina ao assassinato for considerada implausível, não aumentará o número de pessoas que pensam poder escapar impunes?”

É oportuno esclarecer que vários são os tipos de moral. Citando Bertrand Russel:

“Quanto ao que concerne à moralidade, depende muito de como se compreende esse termo. De minha parte, penso que as virtudes importantes são a bondade e a inteligência. A inteligência encontra obstáculo em qualquer credo, não importa qual – e a bondade é inibida pela crença no pecado e castigo...” (RUSSEL, 2011).

A moral atual não é definitivamente derivada de algum livro sagrado de determinada religião. Ela resulta de consensos aos quais chega a sociedade numa determinada época. Deriva do Zeitgeist mutante (DAWKINS, 2007). Segundo Einstein (1981, p. 13):

“O comportamento moral do homem se fundamenta eficazmente sobre a simpatia ou os compromissos sociais, de modo algum implica uma base religiosa. A condição dos homens seria lastimável se tivessem de ser domados pelo medo do castigo ou pela esperança de uma recompensa depois da morte”. 

Nem todo o ethos bíblico é praticável nos tempos atuais. Assim sendo, é temerário creditar a livros ditos sagrados, escritos há centenas ou milhares de anos, a origem da moral atual. 

Apesar disso, não são poucos os que hoje se guiam precipuamente por preceitos morais religiosos. Há fundamentalistas capazes de cometer toda sorte de arbitrariedades sob o manto da religião. Sabe-se, por exemplo, que as Testemunhas de Jeová não admitem de forma alguma a doação de sangue aos que professam tal crença, mesmo que tal proibição redunde no óbito de um ente querido. Na Arábia Saudita a apostasia é crime passível de execução. Em algumas culturas islâmicas é altamente difundida a infibulação feminina infantil. 

Blaise Pascal certa vez afirmou que “os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo como quando o fazem por convicção religiosa”. Já o físico norte-americano Steven Weinberg, ganhador do Nobel de Física de 1979, num discurso de 1999, disse o seguinte: “Para que gente boa faça coisas ruins, é preciso a religião”. 

No ponto de vista dos fundamentalistas religiosos, tudo pode ser criticado, da ciência às opções políticas, mas a religião nunca deve ser criticada, questionada ou discutida, sob pena de quem o fizer ser condenado ao ostracismo ou tornar-se alvo do ódio religioso. Ora, o que não pode ser discutido, submetido a análise, perscrutado em busca de evidências ou criticado se afasta gradativamente da verossimilhança e se torna um dogma; e dogmas nunca fizeram bem à humanidade. Em suma, todas as facetas da existência humana podem e devem ser submetidas a escrutínio.

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Referências bibliográficas:

1 CORÍNTIOS. In: A BÍBLIA: tradução João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 

BERTRAND, Russel. Porque não sou cristão. Porto Alegre: L&PM. 2011.

BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: a globalização e o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

EINSTEIN, Albert. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 

JUÍZES. In: A BÍBLIA: tradução João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. 

NEE, Watchman. O Sentido da Vida: uma reflexão sobre a existência do homem. 6. ed. São Paulo: Editora Árvore da Vida, 1994.

NÚMEROS. In: A BÍBLIA: tradução João Ferreira de Almeida. Revista e Atualizada no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

SAGAN, Carl. Pálido Ponto Azul: uma visão do futuro da humanidade no espaço. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

VIANNA, Túlio. Um Outro Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.



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