Só é possível sonhar quando se pode respirar



Por Cléber Sérgio de Seixas

No primeiro discurso proferido após o anúncio da vitória no pleito presidencial de 2008, foram estas algumas das palavras ditas por Barack Obama: “Se alguém ainda duvida que a América é o lugar onde todos os sonhos são possíveis, se ainda questiona se os sonhos dos nossos fundadores ainda estão vivos, se ainda questiona o poder da nossa democracia, teve esta noite a resposta”. Já na posse, o 44º presidente dos Estados Unidos assim se manifestou: “Esse é o sentido de nossa liberdade e de nossa crença – o motivo pelo qual homens e mulheres e crianças de todas as raças e todas as crenças podem se unir neste magnífico local, e também o porquê de um homem cujo pai a menos de 60 anos talvez não fosse servido num restaurante local pode agora estar diante de vocês para fazer o juramento mais sagrado”. 

Dúvidas de que um negro poderia chegar à Casa Branca já não mais havia após a eleição de Obama. Questionamentos quanto à liberdade dos negros de ocuparem espaços públicos ao lado de brancos, de um afrodescendente sentar ao lado de um branco num assento de coletivo também não se sustentam nos dias atuais. No entanto, tendo em conta que muitos negros continuam sendo considerados seres humanos de segunda classe, muitas interrogações ainda pairam sobre a cidadania dos afro-americanos nos EUA. 

Um negro na Casa Branca não necessariamente indica que os direitos dos negros estão sendo amplamente respeitados nos Estados Unidos, nem tampouco que os que compartilham a raça com o presidente tenham alcançado seu Éden. Acontecimentos recentes atestam que a chegada de Obama ao poder não significou a cidadania plena dos negros norte-americanos. O negro mais poderoso do planeta não fez jus ao Nobel da Paz que recebeu em 2009. A nação que ele comanda replica mundo afora um comportamento de rapina semelhante ao que, séculos atrás, arrancou seus ancestrais do continente africano e os trouxe ao Novo Mundo para trabalhar à exaustão para senhores brancos. Enquanto essas linhas são escritas, a águia do Maine afia novamente suas garras preparando-se para uma nova investida na Ucrânia. A verdade, novamente, será a primeira vítima na continuação da política por outros meios.

Passados 51 anos da Marcha Sobre Washington, e do lendário discurso de Martin Luther King, as palavras do pastor batista ainda soam atuais. “Eu tenho um sonho...”, bradou King para cerca de 250.000 pessoas, numa época de efervescência política cujos eventos calcinavam as certezas da modernidade. O pastor protestante sonhava com o momento em que brancos e negros dar-se-iam as mãos como iguais. O tratamento que ainda é dispensado aos negros nos EUA adia a realização de tal sonho de igualdade. “Nós nunca estaremos satisfeitos enquanto o Negro for vítima dos horrores indizíveis da brutalidade policial”, afirmou o ganhador do Nobel da Paz de 1964. 

Em seu auge, o movimento pelos direitos civis dos negros norte-americanos teve Malcolm X e o supracitado King como protagonistas. Enquanto Malcolm preconizava uma estratégia combativa em prol de melhores dias para os negros, King bebia na fonte do pacifismo de Gandhi. “Será mais nobre suportar a injustiça moderadamente ou pegar em armas para se contrapor à injustiça? Eu fico com a segunda. Se você pegar em armas, você acaba com ela. Mas se esperar os poderosos acabarem com a injustiça, vai esperar muito tempo”, disse Malcolm certa vez, sintetizando sua tática. Já para Luther King “Cristo fornecia o espírito e a motivação, enquanto Gandhi fornecia o método”. Apesar de diferentes nas estratégias, ambos terminariam seus dias vitimados pela intolerância. 

Assim, a despeito de conquistas como a Lei dos Direitos Civis de 1964 e a Lei dos Direitos ao Voto de 65, a década mais prolífica para os direitos civis terminava com um saldo negativo. King e Malcolm, apesar dos estilos diametralmente opostos de lutar contra o apartheid social a que eram submetidos os afro-americanos, tinham pago com a vida o protagonismo no movimento negro.

Na segunda metade da década de 60 surge o Partido dos Panteras Negras, cujo modus operandi estava mais para Malcolm X que para Luther King. A repressão violenta ao grupo forçou-o ao abandono das táticas de enfrentamento e à opção por ações de cunho social junto às comunidades negras. Isso não impediu seu desmantelamento total nos anos 80, resultante, sobretudo, de uma campanha encabeçada pelo FBI, cuja maior obsessão àquela altura era exterminar o partido.

Passadas décadas, ficou claro que a democracia nos Estados Unidos ainda é um mito, pelo menos no que tange às questões raciais. De acordo com Michelle Alexander, socióloga da Universidade de Ohio, os EUA têm atualmente mais negros encarcerados do que possuía de escravos no século XIX. Considerando que os EUA possuem o maior número de detentos do mundo (cerca de 2,3 milhões), e que a maioria da população carcerária estadunidense é negra, pode-se ter uma noção da segregação racial violenta, porém velada e inconfessa, que existe naquele país.

As mortes de Michael Brown e Eric Garner por policiais brancos trouxeram novamente à discussão a questão do racismo nos EUA e levaram milhares de cidadãos às ruas em protesto contra a violência policial contra os negros e a impunidade de seus algozes. O policial que abateu Brown com seis tiros em Ferguson, Missouri, não foi sequer indiciado, bem como o que estrangulou Garner até a morte, ocorrida em julho deste ano em Staten Island, Nova York.

As últimas palavras de Garner, ditas enquanto era sufocado pelo policial Daniel Pantaleo foram “eu não consigo respirar!” Elas se tornaram o lema dos manifestantes. Os protestos se espalharam pelos EUA e sensibilizaram até astros da NBA, como LeBron James, Kevin Garnett e Alan Anderson, que utilizaram camisas com a frase de Garner antes de jogos da liga. O ator Samuel L. Jackson divulgou um vídeo convocando celebridades a cantarem uma música contendo a última frase de Garner, em protesto contra o racismo da polícia. 

De fato, é difícil respirar num país onde 75% dos policiais são brancos e um negro é morto a cada 28 horas pela polícia. Pouco fôlego há quando se vive num país onde um jovem negro tem três vezes mais chances de morrer que um branco. O ar se torna rarefeito quando um negro de 43 anos, após apartar uma briga, e sem esboçar nenhuma reação violenta, sob a acusação de vender cigarros de forma ilegal, é dominado e sufocado até a morte. O ar se torna irrespirável quando é um crime ser negro. 

Isso poderia ser no Brasil, mas ocorre na nação que se arvora em bastião da liberdade, da democracia e da oportunidade no mundo. No Brasil, como nos EUA, a cor da pele precede quaisquer características dos indivíduos, no caso dos negros, depreciando as positivas e ressaltando as negativas e, no caso dos brancos, exatamente o contrário, dando realce às características positivas e nublando as negativas. Num país racista, pouco vale ao indivíduo ser honesto se for negro. Pouco conta o esforço pessoal para vencer na vida se a ascendência e a cor da pele forem negras ou pardas. 

Enquanto os EUA têm seu primeiro presidente negro, no Brasil o máximo que conseguimos foi a chegada de um negro à presidência da mais alta instância do Judiciário. Apesar disto, tanto aqui como acolá, a sociedade e o Estado não saldaram a dívida que têm para com os negros. As políticas compensatórias (Bolsa Família, cotas para negros em universidades públicas, etc) constituem uma via que tem sido percorrida pelo Brasil no sentido de alforriar de fato seus negros. Tais políticas são necessárias na medida em que os desiguais devem ser tratados de forma desigual para que um dia a igualdade de oportunidades, independente da raça, seja alcançada. 

Quando isso acontecer, poderão os negros estadunidenses e brasileiros, além de sonhar, respirar. Obama lembrou o sonho dos pais fundadores da nação americana; Luther King sonhava com um dia melhor para os negros americanos, mas só é possível sonhar quando se pode respirar.


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