Ditadura civil-militar - desmistificar para que não se repita



Por Cléber Sérgio de Seixas

Nesse 1º de abril, muitos de brasileiros vão “descomemorar” os 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Há quem diga que é desnecessário escavar o passado, ato que revelaria um espírito de vingança e um revanchismo desnecessários. Os que assim se manifestam justificam tal assertiva dizendo que o país retomou a democracia, e a anistia já foi concedida a ambos os lados que cometeram excessos, estando, portanto, quites. 

Por dever de consciência e obediência à verdade histórica e factual deve-se discordar, haja vista que atos e fatos ocorridos nos 21 anos nos quais o Brasil viveu sob a ditadura ainda permanecem envoltos pela névoa da dúvida e da impunidade. Por exemplo: nenhum militar responsável por tortura, assassinato ou seqüestro foi punido por seus atos durante o período ditatorial. 

À medida que se acumulam tentativas aqui e ali de reescrever a História - de tentar cobrir os golpistas de 64 com uma aura de patriotismo, como se estes tivessem desferido um contra-golpe ao invés de golpe, preocupados que estariam com o perigo da instalação do comunismo no Brasil via Jango; de renomear uma sangrenta ditadura, rebatizando-a de “ditabranda”; de enaltecer os prodígios do assim chamado milagre econômico e ocultar seus retumbantes fracassos; de criminalizar os que lutaram contra um regime de exceção que suprimiu todos os canais democráticos de luta -,  urge lutar para que esse tempo, essa página infeliz de nossa História, não se torne uma passagem desbotada na memória das nossas novas gerações, como diria Chico Buarque. 

Desanuviar esse passado é, portanto, impedir que ele se repita. Tal tarefa passa por desfazer mitos que se acumularam no imaginário popular desde a redemocratização, há 29 anos. 

Um desses mitos é aquele que apregoa que durante a ditadura cívico-militar não havia corrupção. Um sem-número de fatos joga por terra essa tese. Por exemplo: recentemente o coronel reformado do Exército Erimá Pinheiro Moreira, 89 anos, em depoimento à Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, afirmou que presenciou no dia 31 de março de 1964 o general Amaury Kruel recebendo seis maletas contendo US$ 1,2 milhão das mãos do então presidente da FIESP (Federação das Indústrias do estado de São Paulo), Raphael de Souza Noschese. Kruel, antes amigo e compadre de Jango, foi um dos homens chave do Golpe ao deslocar as tropas do II Exército, sob seu comando, de São Paulo ao Rio, onde o golpe seria desfechado. Como se vê, tal como na Bíblia, a ditadura também teve seu Judas. Muitos militares, como Kruel, usaram o patriotismo como justificativa para seus atos antidemocráticos. Cabe, então, parafrasear o pensador inglês Samuel Johnson e dizer que “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”. 

E qual não foi a surpresa dos integrantes da VAR-Palmares, em 18 de julho de 1969, ao abrir um cofre roubado da casa do irmão da amante do governador de São Paulo, Adhemar de Barros, na época apelidado de “rouba mas faz”. A “caixinha” do Adhemar continha a bagatela de 2,6 milhões de dólares. Sempre sustentando que o cofre estava vazio, a quantia nunca foi reclamada pela amante do governador nem por seus herdeiros. E nem poderia, já que se tratava de dinheiro roubado, tomado a empreiteiros e bancas do bicho (GASPARI, 2002). 

Há que se citar, também, o ganho suspeito de concorrência para uma operação de exploração de madeira no Pará pela Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares), os desvios de verba na construção da ponte Rio-Niterói e da Transamazônica, entre outros.

Outro mito está embutido no termo que ficou para a História para nomear o período militar, qual seja, ditadura militar. Na verdade, seria mais correto chamá-la de ditadura civil-militar ou cívico-militar, já que foram os civis que acorreram aos quartéis clamando pelo golpe e em alguns momentos o mantiveram financeiramente. Uma prova disto foi o engajamento pró-golpe dos governadores dos estados mais desenvolvidos do país, a saber, Minas Gerais, São Paulo e Guanabara. Posteriormente, já no período que ficou para a posteridade como “anos de chumbo”, a formação da OBAN (Operação Bandeirantes), cujos maiores financiadores foram executivos de grandes empresas como Ford, Volkswagen, GM, Grupo Ultra, Grupo Camargo Corrêa, Grupo Folha, Amadeu Aguiar (Bradesco) e outros, como o governador e o prefeito de São Paulo, respectivamente Abreu Sodré e Paulo Maluf, deixou clara a parceria de civis com o regime.

O passado grita aos ouvidos e propõe esta lição: nas terras latino-americanas, quando as classes dominantes não conseguem manter-se no poder através das urnas, convocam as forças armadas para esmagar as forças que propõem mudanças, ou que conduzem mudanças já em curso, “de forma a manter uma ordem interna de privilégios e condições econômicas e políticas sedutoras ao capital estrangeiro: terra arrasada, país em ordem, trabalhadores mansos e baratos.” (GALEANO, 1989, p. 304).

Outro mito a respeito da ditadura cívico-militar que merece destaque se refere aos beneficiários do crescimento econômico auferido durante o período, conhecido como “milagre econômico”. O ano de 1969 fechara com o crescimento do PIB em 9,5%, inflação estabilizada abaixo dos 20%, 11% de expansão do setor industrial, exportações alcançando a cifra de 1,8 bilhão de dólares, taxa de poupança bruta em 21,3% - números que fizeram com que o Brasil se tornasse a décima economia do mundo, a oitava do Ocidente e a primeira do hemisfério sul (GASPARI, 2002). 

Porém, todo esse crescimento se efetivava às custas de remédios amargos dados aos trabalhadores: proibição de greves, destruição de sindicatos e partidos, prisões, torturas e assassinatos. Era necessário “matar e abater pela violência dos salários operários, para conter assim, à custa da maior pobreza dos pobres, a vertigem da inflação.” (GALEANO, 1989, p. 230). Serge Birn, técnico norte-americano em organização de trabalho, apresentava os seguintes dados do período:

Para ganhar o que um operário francês percebe em uma hora, o brasileiro tem que trabalhar, atualmente, dois dias e meio. Com pouco mais de dez horas de serviço, o trabalhador norte-americano ganha, em equivalência, um mês de trabalho do carioca. E para receber um salário superior ao correspondente a uma jornada de oito horas do operário do Rio de Janeiro, é suficiente que o inglês e o alemão trabalhem menos de 30 minutos.” (GALEANO, 1989, p. 270). 

Foi por essas e outras que o ditador Emílio Garrastazu Médici certa vez afirmou que “a economia vai bem, mas o povo vai mal”. O bolo cresceu mas poucos endinheirados conheceram-lhe o sabor.

Ancorado em capitais estrangeiros, o “milagre” tinha pés de barro. Bastou a eclosão da crise do petróleo de 1973 e de crises de liquidez a partir de 1974 para que ele apresentasse suas primeiras fissuras, legando aos próximos ditadores e presidentes uma escalada inflacionária que contribuiria para o enfraquecimento da ditadura e derrotaria vários planos de recuperação econômica. 

Esses e outros são mitos que vão tomando conta dos corações e mentes daqueles que não viveram a ditadura civil-militar ou não se interessaram em conhecer mais sobre o período. Não é fácil a tarefa de desmistificar a ditadura civil-militar, mas ela é urgente na medida em que a falta de memória vai conduzindo à reescrita da História conforme os interesses dos golpistas de 64. Tais interesses recentemente conduziram à fracassada reedição da Marcha da Família com Deus e pela Liberdade.

Países como Argentina e Chile vão passando a limpo seu passado, condenando assassinos, torturadores, estupradores e colaboradores dos regimes de exceção.  No Brasil, aos poucos, comissões especiais vão trazendo a verdade à tona. 

A História é assim: profetiza com o olhar voltado para trás - olha para o que se passou para anunciar o que o futuro poderá trazer. Não conhecer o passado é um convite a repeti-lo.

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Bibliografia:

GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 29. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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