Do Outro Lado da Linha, o Proletário


Por Leandro Uchoas

Nos Estados Unidos, o 4 de julho é uma data amplamente comemorada. O Dia da Independência do país é marcado por potentes marchas militares e outras celebrações. No Brasil, a data está destinada a ter pouca visibilidade e até gerar certa repulsa. É que o 4 de julho marca, no país, o Dia do Operador de Telemarketing. Em ampla expansão – cresce de 14% a 17% ao ano – a categoria é odiada por boa parte das pessoas em todo o mundo.

Tomado por chato, o operador é frequentemente maltratado pelas pessoas. O que poucos conseguem perceber é que, muitas vezes, essa é a alternativa de emprego que têm.

Surgida na carona dos avanços tecnológicos – que supostamente serviriam para melhorar a vida das pessoas –, a profissão revela indícios diversos de exploração do trabalho. Há alguns meses, foi lançado o livro Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual. A obra foi organizada pelos sociólogos Ricardo Antunes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Ruy Braga, da Universidade de São Paulo (USP), e aborda o surgimento da profissão no contexto da reconfiguração do mundo do trabalho e das analogias entre a precarização do setor e a do universo industrial dos séculos XIX e XX.

A principal constatação dos estudos é a de que o operador de telemarketing, mesmo atuando no setor de serviços, é uma espécie de novo proletário. A partir do aumento do uso da tecnologia de informação e da permanência de relações de exploração do trabalho, surge um trabalhador contraditório. É moderno, mas convive com as condições de trabalho precárias do passado. “O trabalho é muito isolado – as pessoas trabalham em baias. O tempo para refeição e para ir ao banheiro é muito pequeno. E há a inexistência de tradição sindical”, afirma Ricardo.

A profissão surgiu nos anos de 1990. A partir da privatização das telecomunicações, empresas passaram a oferecer serviços por telefone. Com o tempo, as centrais de atendimento tornaram-se verdadeiros núcleos de comunicação e de verificação de satisfação de clientes. O fenômeno ocorre no mundo todo. Embora o Brasil tenha um número menor de centrais em relação a outros países – 4% do que têm os Estados Unidos –, apresenta maior índice de trabalhadores por local de trabalho – média de 1.103 por corporação, contra 172 na Alemanha. O crescimento do setor é significativo, também, em todo o mundo – no Reino Unido, avançou 250% em dez anos; na Alemanha, 100% em sete. Enquanto nos Estados Unidos 3% da população já trabalham no setor, no Brasil o índice é de 2% da população economicamente ativa com ensino superior incompleto.

Hipertaylorismo

A socióloga Selma Venco, da Unicamp e autora de um dos capítulos de Infoproletários, encontra na precarização da profissão elementos do chamado taylorismo. “São diversas características próprias do mundo industrial. Há a separação entre quem trabalha e quem planeja, a obediência a um tempo médio, o controle massivo da produtividade através da própria tecnologia. Mas há elementos novos, como a capacidade de pressão do cliente. Já não é mais só a máquina e o chefe”, diz. Escudado pela distância promovida pelo telefone, e com o poder de desejar e reclamar, o cliente seria elevado a uma “condição de rei”.

Alguns estudiosos criaram o conceito de hipertaylorismo à medida que as novas tecnologias permitem controle da produtividade dos operadores em tempo real. Segundo os dados, os trabalhadores do telemarketing não têm o tempo de preparação adequado. O treinamento, que deveria durar cerca de quatro meses, costuma ser oferecido por um período que varia de uma semana a um mês. O resultado é a incapacidade de cumprir as rigorosas metas que são estabelecidas. Em média, nos primeiros quatro meses, há um enorme desgaste do trabalhador, pela cobrança excessiva, pela ausência de resultados e pela individualização do fracasso. Depois, por aproximadamente dez meses ocorre uma relativa satisfação do trabalhador, porque ele passa a conseguir desempenhar seu papel. Após esse tempo, vem o período chamado de “rotinização”. O trabalhador passa a sofrer com o monitoramento constante, a incapacidade de progredir e as doenças que invariavelmente aparecem (LER, tendinite, surdez precoce, afetação nas cordas vocais, entre outras).

Mas o operador fica, de certa forma, preso ao emprego. “Num mercado como o brasileiro, em que dois em cada três postos pagam menos de dois salários mínimos, ele não tem para onde ir. Torna-se um operador ‘lateralizado’. Muda de emprego sem mudar sua forma de atuação”, diz Ruy Braga, que na última década se especializa no estudo do setor. Em poucos meses, o trabalhador considera sua atividade insuportável – e por vezes antiética –, mas não tem como sair. “O telemarketing resume as relações de trabalho nos anos 2000. Exemplos disso são o fechamento de postos, o aumento do setor de serviços e a precarização”, completa Ruy.

Home office

Outro questionamento trazido pelos pesquisadores diz respeito à suposta vantagem do “home office”. A capacidade que as novas tecnologias têm de permitir que se trabalhe em casa é, em geral, considerada positiva. As pessoas tendem a louvar a possibilidade de planejar seu horário e trabalhar perto da família. Entretanto, Ricardo Antunes denuncia a precarização embutida nesse processo. “Esse é o melhor dos mundos para o capital. Ele se desobriga de fornecer espaço ao trabalhador, de pagar custos, de arcar com as demandas de saúde. E, ao trabalhar em casa, a pessoa perde o controle da carga horária: o público e o privado se misturam. A jornada termina por se estender”, avalia.

Os dados do livro são peremptórios. O aclamado avanço tecnológico não tem gerado benefícios sociais e a exploração do trabalho segue, revestida por novos formatos. “O avanço tecnológico está a serviço das relações de exploração e da busca por lucro”, avalia Ruy. Ricardo concorda. “A tecnologia tal como conhecemos é plasmada por relações sociais de produção capitalista. Tem a cara, a forma e o conteúdo do capital. É moldada para a valorização do lucro.” Segundo ele, uma sociedade que não se deixe escravizar pelo produtivismo poderia usar a tecnologia para trabalhar apenas três horas por dia, quatro dias por semana.


Fonte: site Brasil de Fato.com.br

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