Deuses



 Por Jeferson Malaguti Soares


Não me tornei ateu por ter abraçado a causa comunista; tampouco me tornei comunista por questionar a existência de Deus. A filosofia da doutrina materialista do comunismo tem na matéria a realidade fundamental do universo e seus fenômenos sociais e naturais. No entanto, o fato de ser ateu, ou ter-me tornado ateu, não me impede de assimilar e compactuar com ensinamentos sociais cristãos. 


Aliás, os ensinamentos cristãos diferem muito pouco do que nos ensina o judaísmo, o budismo ou o islamismo. Os ensinamentos contidos na Bíblia, no Alcorão, na Torá ou na Tripitaka (livro sagrado do budismo) se assemelham em valores e princípios. As regras de conduta de que tratam os fundamentos dessas religiões são análogas. Os valores que nos conduzem no dia-a-dia da nossa convivência social e comunitária apontam para uma única direção: o outro. Respeitar o outro como pessoa, no entanto, não significa comungar com tudo o que ele pensa ou faz. 


O fato de ser ateu, ou de ter-me tornado ateu, significa que meus pensamentos não se baseiam mais num paradigma religioso. O que seria esse paradigma religioso? Trata-se, por exemplo, de uma visão de mundo onde se verifica a existência de uma simplificação dicotomica que aponta apenas céu e terra; uma tendência maniqueísta de enxergar apenas bem e mal, claro e escuro, sem indicar qualquer nuance entre certo e errado; que jamais contextualiza os caminhos que levam indivíduos a optar por um ou outro caminho. Há mais matizes entre o branco e o preto do que supõe nosso limitado aparato visual. Com seu disco, Newton demonstrou que o branco é bem mais colorido do que aparenta.


Me foram dados valores no berço, segundo a religião cristã e católica na qual fui criado. Isso não significa que preciso manter-me religioso para não perder tais valores. Não significa que preciso acreditar em um deus para não abdicar desses valores, haja vista que determinados valores precedem tratados religiosos. 


Me perguntaram outro dia se para mim Deus havia morrido. Respondi que não, pois se um deus é infalível, é, também, imortal. E se ele não existisse, não poderia morrer, pois para morrer é preciso, primeiro existir, ter vida. Para mim, Deus existiu até um determinado momento de minha vida, momento em que passei a questionar a infalibilidade divina, sua onipresença, onisciência e onipresença. 


Como Deus pode ser tudo isso e o mundo estar numa decadência absurda de valores, de critérios, de normas e de princípios? É costumeiro argumentar citando o livre arbítrio concedido aos homens. Contudo, a possibilidade de decisão por parte da criatura não se coaduna com dois atributos comumente associados à deidade, a saber, onisciência e onipotência. Para ficar no exemplo de Javé, divindade  tanto de cristãos, judeus e muçulmanos (com nomes diferentes, mas em essência, o mesmo deus),  como conceber que tal ser superior e criador tenha ciência de futuros atos ilícitos da criatura e ainda assim permita que esta desvie-se da rota originalmente traçada? Ademais, como entender a realidade que nos cerca se admitirmos a existência de um deus que tem poder sobre todas as coisas e pouco ou nada faz para impedir que a obra-prima de sua criação, o homem, desencadeie eventos e ações prejudiciais a si e a outrem? Cabe ainda a seguinte indagação: se uma entidade tem poder para evitar ações desviantes e nocivas da criatura que gerou, e nada faz para impedí-las, essa inação se deve a uma perversidade intrínsiceca à deidade ou revela que a onipotência é mera falácia? Não é mister neste breve artigo um aprofundamento na lógica contida no célebre Paradoxo de Epicuro, no entanto, tal obra é instrumental e crucial ao contrapor as faculdades divinas ao suposto livre arbítrio da criatura. Dá-se corda ao equino até o limite do aceitável. Atingido o limite, bastaria puxar as rédeas. Como admitir um mundo sob a égide de um deus, mas que corre de rédeas soltas?


Não me tornei ateu do dia para noite. Foi um processo longo e doloroso. O medo de não mais acreditar que Deus existe era grande. Afinal, o que as religiões nos ensinam a não ser ter medo? Aprendemos que deuses são vingativos, que reservam a alguns recompensa e a outros, punição. Para isto criaram céu e inferno, lugares para fruição e danação, o primeiro para os pios e o segundo para os ímpios. Tendo em conta o perdão, um sentimento de vingança por parte de um ser dito evoluído e superior não o nivela à criatura? Admitindo que o ciúme é um sentimento ruim e próprio dos humanos, se um deus é ciumento, em que isso o distingue dos reles mortais? Nos mitos gregos, por exemplo, deuses compartilhavam com os humanos sentimentos como inveja, ciúme e medo.  Medo, substantivo masculino que atinge homens e mulheres, é uma sensação nada agradável que nos coloca invariavelmente em estado de alerta. Quando demasiado, se transforma em pavor. O medo é um dos sustentáculos da maioria das religiões: medo de desagradar a Deus, medo de ir para o inferno, medo da punição eterna etc. 


Decidi não mais professar qualquer religião. Afinal, que eu saiba, o Jesus histórico não criou nenhuma. E o fato de eu concordar com os ensinamentos e os valores do Cristo, não me obriga entendê-lo como Deus. Jesus foi um homem além de seu tempo. Os princípios que ele nos legou são imprescindíveis para uma vida virtuosa, sem dúvida. Mas, acredito, como definiu Nietzsche, que os ensinamentos de Cristo morreram com ele na cruz. Sim, porque Jesus Cristo não escreveu nada do que disse, foram os homens que reproduziram seus pensamentos, hora aumentando-os, hora diminuindo-os, hora omitindo-os. Nunca saberemos a real envergadura de seus pensamentos. Mas, repito, isto não me obriga a enxergá-lo como Deus.


Depois de ter-me desgarrado da religião, ficou mais fácil me libertar do medo de um Deus que, para mim, deixou de existir ou nunca tenha existido. Deuses foram criação de homens para, dentre outras coisas, impor limites a outros homens. Assim, nossos ancestrais pré-históricos adoravam o sol, a lua, as estrelas ao passo que tinham pavor de relâmpagos e trovões. Mais tarde, mesopotâmicos e egípcios criaram outros deuses. E o que dizer da mitologia grega, com suas quimeras mil, suas entidades fantasiosas, vingativas e mágicas? 


Inventar deuses foi o trabalho mais ganancioso e menos produtivo do homem. Marx contrariou a tradição bíblico-mosaica ao afirmar que Deus é que foi criado à imagem e semelhança do homem. Já Saramago vaticinou que os homens criaram Deus em decorrência do medo da morte. 


Foram-se os séculos e a humanidade evoluiu, apesar dos deuses. Os homens estão cada dia piores ou melhores? Os que temem a cólera dos deuses se diferem positivamente em atos daqueles que não se curvam a divindades? Até que ponto os crédulos confundem a vontade e as diretrizes de seus líderes religiosos com a suposta vontade de um deus? Ateus práticos são melhores que ateus convictos? São interrogações prementes nesse momento histórico pós-moderno que ainda não vivenciou o crepúsculo dos deuses. Pelo contrário, apesar dos paradigmas modernos, os deuses estão mais vivos que nunca, pelo menos nas mentes e corações.