De canalhas e inocentes úteis

Dax (ao centro) e Mireau (à direita) numa das cenas de Paths of Glory

Existe um povo que a bandeira empresta 
Pr'a cobrir tanta infâmia e cobardia!
E deixa-a transformar-se nessa festa 
Em manto impuro de bacante fria!
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!
Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!

Castro Alves - Navio Negreiro

Por Cléber Sérgio de Seixas

Em discurso histórico na tribuna do Senado nacional, proferido em 30 de agosto último por ocasião da votação do impedimento da Presidente Dilma naquela casa, o senador Roberto Requião (PMDB/PR), aludiu à reação de Tancredo Neves à declaração de vacância da Presidência da República proferida pelo senador Aldo de Moura Andrade na madrugada do fatídico 02 de abril de 1964. Naquele day after do golpe, Tancredo reagiu de forma incisiva àquela declaração e bradou: “canalha, canalha, canalha!”, referindo-se a Andrade. A alusão de Requião foi oportuna na medida em que o Brasil está, novamente, diante de um golpe de Estado. 

Paths of Glory (Stanley Kubrick, 1957) é destaque entre as películas anti-belicistas do cinema. A trama gira em torno de uma missão suicida a que são convocados soldados franceses, a qual consistia na tomada de uma posição dominada pelo exército alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Seduzido pela hipótese de ser condecorado e promovido caso seus subordinados realizem tal missão, o General Paul Mireau, vivido pelo ator George Macready, ordena a empreitada. Seu posicionamento em relação à missão, contudo, entra em choque com o do Coronel Dax, protagonista interpretado por Kirk Douglas. Enquanto Dax põe em relevo o custo em vidas da operação, Mireau, pragmático e maquiavélico, menospreza o sofrimento e as perdas humanas no campo de batalha, sem disfarçar sua ambição pelos louros da glória.  Um dos grandes momentos do filme fica por conta do diálogo entre Dax e Mireau, quando o primeiro faz alusão a uma célebre frase de Samuel Johnson, pensador inglês do século XVIII, qual seja: “o patriotismo é o último refúgio do canalha”. 

De fato, e tal como no longa de Kubrick, às vezes o patriotismo serve de guarida aos mais execráveis interesses, encobrindo com seu manto o individualismo, e confundindo projetos pessoais ou de uma classe em particular com causas coletivas. Deve-se aqui frisar que quem luta nos conflitos armados entre países não são os membros das classes abastadas e sim, e em maioria esmagadora, os representantes das subalternas, enviados ao matadouro em nome dos interesses das burguesias de suas respectivas nações, interesses aos quais é mais útil o conceito de pátria. Os trabalhadores, porém, não têm pátria, dizia o velho Marx, pelo menos não a pátria na acepção burguesa da palavra.

O nacionalismo exacerbado foi um dos parteiros do fascismo europeu que veio a lume nos idos de 20 e 30 do século XX. “Nada pelo indivíduo, tudo pela Itália!”, eram as palavras de Mussolini naqueles tempos. O Duce fez jus à sua afirmação ao implantar um Estado policial, suprimir a liberdade de expressão, cercear organizações de classe como partidos políticos e sindicatos, mas fê-lo para beneficiar o patronato. Ao mesmo tempo, implementou um culto à sua personalidade, o que destoa de sua célebre frase supramencionada. 

Na política, sobretudo aquela praticada em solo tupiniquim, é aconselhável, sobretudo depois de 21 anos de ditadura militar, desconfiar quando alguém evocar os “valores da pátria”, o nacionalismo e o patriotismo. Sabe-se, hoje, por exemplo, que o golpe militar de 1964, dado em nome da defesa da pátria e contra o comunismo internacional, subordinou-se mais aos interesses de Washington que de Brasília. O golpe militar de 1964, teleguiado dos EUA, ainda hoje, é tido por alguns como uma reação em defesa da unidade nacional diante da ameaça comunista. O fato é que, consumado o golpe, as medidas econômicas implementadas obrigaram empresas nacionais a se associarem ao capital estrangeiro. Assim, enquanto linhas de produção de empresas estrangeiras foram instaladas no Brasil, predominavam salários baixos e trabalhadores sem condições de organização e mobilização em face da repressão ditatorial.

Canalhas também valeram-se do nacionalismo para interromper um governo eleito democraticamente no Chile. Pouco tempo depois do bombardeio ao Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, no fatídico 11 de setembro de 1973, o General Augusto Pinochet, líder dos militares golpistas, assim discursou: “As forças armadas e da ordem só debaixo de inspiração patriótica de libertar o país do caos que de forma aguda o estava precipitando o governo marxista de Salvador Allende...”. Se Pinochet alegava a pátria como inspiração, é pacífico, hoje, que aquele violento golpe militar visou, na verdade, salvaguardar os interesses econômicos estadunidenses naquela nação, transformando-a num laboratório para a primeira experiência neoliberal do mundo. 

Na votação do impeachment da presidenta Dilma no dia 17/04 último, não faltaram parlamentares que proferiram seus votos enrolados no estandarte auriverde que simboliza a pátria brasileira. O deputado federal pelo PSDB mineiro, Caio Nárcio, por exemplo, proferiu seu voto a favor do afastamento de Dilma envolto numa bandeira do Brasil e sublinhou que votou “por um Brasil onde meu pai e meu avô diziam que a decência e a honestidade não era possibilidade, mas era obrigação”. Após votar pelo impeachment da presidenta, beijou a bandeira. Um mês depois, no dia 30 de maio para ser mais preciso, o pai do deputado supracitado, o ex-deputado federal, ex-presidente do PSDB mineiro e ex-secretário de Ciência e Tecnologia do governo Anastasia, Nárcio Rodrigues, foi preso pela Polícia Federal sob a acusação de suposta participação em um esquema de desvio de verbas públicas da ordem de R$ 14 milhões que teria funcionado entre 2012 e 2014.

As cores dos que bradaram o “Fora Dilma!” foram, predominantemente, as do estandarte brasileiro. Não faltaram aqueles que vestiram camisas da CBF, uma instituição sobre a qual pairam graves denúncias de corrupção por parte de alguns de seus membros. É prudente desconfiar de organizações que supostamente se movimentam por um Brasil livre e, nos bastidores, são financiadas por entidades internacionais, sobretudo estadunidenses, interessadas no desmantelamento econômico nacional e na genuflexão do Brasil ante os EUA no cenário geopolítico internacional. Não faltaram aqueles que se cobriram de verde e amarelo e expulsaram de suas manifestações quaisquer indivíduos que trajassem vermelho, o que destoa da pluralidade e do respeito às diferenças, estes, pressupostos de qualquer nação que se pretenda civilizada. 

Fossem os canalhas pseudonacionalistas mais honestos, vestir-se-iam com as cores dos partidos ou dos países que os financiam por debaixo dos panos. Se assim fosse, as manifestações pró impeachment teriam mais matizes, com colorações que iriam muito além do amarelo canarinho. Por falar em amarelo, a ideia do pato amarelo, um dos símbolos da campanha pelo impeachment, segundo a BBC, teria sido importada da Holanda de Rembrandt, não sendo, portanto, uma criação da Fiesp. Vê-se, assim, que até mesmo um dos símbolos dos pseudonacionalistas é um plágio de ideias alheias. 

É preciso ter claro, no entanto, que nem todo nacionalista é um canalha. É temerário reduzir todos os que se vestiram de verde amarelo contra o governo Dilma a um bando de canalhas. Infelizmente, porém, muitos dos que marcharam pelo impedimento de Dilma cobertos de verde e amarelo prestaram-se a inocentes úteis. Por outro lado, todo nacionalista que se utiliza das cores e valores da pátria para salvaguardar e encobrir seus interesses pessoais ou de nações alheias em detrimento das necessidades do povo brasileiro é um canalha vende pátria. 

Portanto, o estandarte de uma nação pode servir aos mais diversos interesses. A bandeira que pode fundir povo, costumes, tradição e território, constituindo-os em nação, pode também servir de mortalha àqueles que forem abatidos no combate aos arautos de um pseudonacionalismo. Assim, revestem-se de atualidade os versos de Castro Alves quando o estandarte brasileiro é transformando pelos golpistas em manto impuro e mortalha para um povo brasileiro cansado de sofrer.

Comentários

Anônimo disse…
GOLPISTAS NÃO SE LEMBRAM DO PAÍS A NÃO SER NO DIA EM QUE RECEBEM SALÁRIO...