Um discurso temerário



Por Cléber Sérgio de Seixas

O ambiente do primeiro discurso de Michel Temer como presidente interino deu a tônica do que serão os próximos 02 anos caso o impeachment de Dilma se confirme. A julgar pelo que se viu e ouviu na última quinta-feira, depreende-se que a gestão Temer será de um governo de ricos para ricos, que privilegiará as classes mais abastadas e o rentismo, e onde as minorias não terão vez nem voz. O mise-en-scène bem que procurou transmitir austeridade ao evento, mas não conseguiu esconder o caráter conservador e elitista do novo governo. Não se viu ali nenhuma ministra mulher ou negra, pelo contrário, o staff do presidente provisório é exclusivamente composto de brancos e ricos. 

Sem trocadilhos, mas tratou-se de um discurso, para dizer o mínimo, temerário. Temer citou a crise atual por três vezes em seu pronunciamento à nação: 
- “Partidos políticos, lideranças e entidades organizadas e o povo brasileiro hão de emprestar sua colaboração para tirar o país dessa grave crise em que nos encontramos”. 
- “O Brasil, meus amigos, vive hoje sua pior crise econômica”.
Na terceira vez em que o vocábulo crise foi utilizado, Temer o fez dando a entender que durante seu governo o termo será varrido do léxico:
- “Dizia aos senhores que a partir de agora nós não podemos mais falar em crise. Trabalharemos. Aliás, há pouco tempo, eu passava por um posto de gasolina, na Castelo Branco, e o sujeito botou uma placa lá: ‘Não fale em crise, trabalhe’. Eu quero ver até se consigo espalhar essa frase em 10, 20 milhões de outdoors por todo o Brasil, porque isso cria também um clima de harmonia, de interesse, de otimismo, não é verdade? Então, não vamos falar em crise, vamos trabalhar”. 

O novo presidente não precisa se preocupar, pois a responsabilidade de banir o termo crise do vocabulário do brasileiro pelos próximos dois anos ficará a cargo do maior aliado do governo interino: a grande mídia comercial, o parceiro de todas as horas dos governos burgueses e conservadores. Doravante, a abordagem em relação à inflação, ao desemprego, aos problemas em saúde, segurança e educação far-se-á sob nova roupagem, instando os trabalhadores brasileiros a arcar com o ônus da resolução da crise à moda neoliberal. 

“A crise é de caráter”, bradava o vereador mineiro Wilson Tropia nos idos de 90. Naquele tempo, era comum ouvir: “em momentos de crise, retire o ‘s’ ”.  Ambas as frases denunciam a metodologia neoliberal de remeter a resolução de problemas sociais ao âmbito pessoal, isentando o poder público de responsabilidades e ao mesmo tempo atomizando os indivíduos, assim afastados de causas coletivas. É como se dissessem: “a sociedade não está em crise; você, sim, está em crise”, ou “ não há problemas a sua volta, o problema está em você, bem como a solução só depende de você mesmo”. Talvez isso explique o porquê de a literatura de auto-ajuda ter se popularizado tanto no Brasil a partir dos fatídicos anos 1990. Naquela década, por exemplo, o desemprego era tratado como “oportunidade” para “repensar” a carreira e dar à mesma novos rumos. Só esqueceram de combinar com os suecos como um trabalhador desempregado daria novos rumos à carreira enquanto as dívidas aumentavam e os filhos clamavam pelo pão de cada dia. A crise existia – e por conta da má gestão pública, diga-se de passagem – mas o governo, assessorado pelos meios de comunicação, induziam ao pensamento de que bastava esforço e criatividade para que o trabalhador superasse as dificuldades e alcançasse patamares superiores. 

Um parêntese: a alusão de Temer ao trabalho enquanto panaceia para a crise traz à lembrança uma frase famosa que os nazistas utilizaram durante o Holocausto. Arbeit macht frei (“o trabalho liberta”) emoldurava a entrada de vários campos de concentração e extermínio. Tal como os nazistas queriam enganar os judeus que adentravam nos campos de concentração, bem como toda a sociedade, em relação ao que realmente ocorria dentro daqueles lugares, a mídia nacional, sumindo com a crise do noticiário, tenciona ludibriar a opinião pública induzindo-a à crença de que basta trabalhar para se contornar a crise, bem como alcançar todos os objetivos. Sabe-se, hoje, que o trabalho não salvou um grande número de judeus da morte. Da mesma forma, o trabalho, apenas, não livrará o trabalhador brasileiro das agruras econômicas que se avizinham. Fecha parêntese.

Sumindo com a palavra crise do noticiário e, por extensão, do imaginário popular, Temer e seus asseclas pretendem pacificar a nação obtendo, assim uma pax burguesa: “Reitero, como tenho dito ao longo do tempo, que é urgente pacificar a Nação e unificar o Brasil”. Em outro trecho, asseverou: “Muito bem, nesta Constituição, a independência nacional, a defesa da paz e da solução pacífica de conflitos”. Temer continuou: “E traça uma imagem de um País pacífico e ciente dos direitos e deveres estabelecidos pela nossa Constituição”. Por fim, um apelo à ordem, com base na frase estampada na bandeira: “O nosso lema - que não é um lema de hoje -, o nosso lema é Ordem e Progresso”. Diante das falas do presidente interino deve-se indagar quem no país lucrará com a paz e a ordem em tais moldes.

Antes de finalizar, uma pequena constatação: o local onde se encontra a frase avistada e citada por Temer em seu temerário discurso fica no Km 68 da Rodovia Castelo Branco, a 70 Km de São Paulo. Segundo reportagem recente da Folha de São Paulo, trata-se de um posto de gasolina desativado, onde também funcionam uma loja de móveis rústicos e uma série de pequenos negócios que parecem estar às moscas. De acordo com matéria do Jornal Extra, o dono do local, o senhor João Mauro de Toledo Piza, o Joca, que mandou instalar a placa com os dizeres, estaria preso cumprindo pena de 08 anos em regime fechado por homicídio. 

Comentários

José Ribamar disse…
Parabéns pelo belo texto. Sempre acompanho seus textos, pois são muito esclarecedores e dao uma visão sobre os momentos tão difíceis em que nosso povo está passando. Sabemos que quando este cruel e sujo golpe se consolidar, nosso povo sofrido irá novamente se recolher nos tristes bolsões da indigencia e da dor.
Por isso peço encarecidamente ao amigo Cleber que nunca deixe de ser a voz do nosso povo sofrido, que no frigir dos ovos sempre paga o pato.